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Ministério diaboliza ensino recorrente

A FÚRIA LEGISLADORA DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO CRIA SITUAÇÕES CONTRADITÓRIAS E INJUSTAS. O ENSINO RECORRENTE PARECE TER-SE TORNADO MEMBRO DO GRUPO «INIMIGO PÚBLICO N.º 1».

Por muito que a gente diga que já nada nos surpreende, há sempre um fenómeno qualquer capaz de nos fazer abrir a boca de espanto, regra geral, indignado. Foi o que me aconteceu recentemente, quando uma aluna do ensino secundário recorrente, que concluiu há dois anos a disciplina de Inglês numa das minhas turmas, me informou, revoltada, que afinal a disciplina não estava acabada coisa nenhuma e que o registo lançado no livro de termos seria dado como sem efeito. Isto porque saíra uma Portaria que declarava irregular o teste diagnóstico de posicionamento (TDP); portanto, aquele através do qual há três anos eu a colocara na 8ª unidade de Inglês tinha perdido o suporte legal. E agora, com o curso concluído, não poderia obter a respectiva certificação sem fazer as primeiras sete unidades, de cuja frequência ficara isentada. É evidente que não acreditei e recomendei-lhe calma, afinal todo o seu percurso tinha sido feito em rigorosa observância da legalidade e, quanto à Portaria, necessariamente que estava a ser mal interpretada: não há leis retroactivas num Estado de direito. Dito isto, fui ler a Portaria nº302/2003 de 12 de Abril. Li várias vezes o ponto 8 e, admitindo estar sugestionada, pus-me em contacto com colegas de outras escolas, que me confirmaram que era assim mesmo, e que, consultadas as DREs, estas insistiam na obrigatoriedade de cumprimento daquela disposição.
Ora o TDP em causa tinha sido efectuado ao abrigo do Despacho Normativo 36/99 de 22/07, esclarecido pela Circular Conjunta 4/99, onde se diz que ele ?permite determinar o nível de competência atingido pelo formando em referência aos conteúdos de uma disciplina ou área tecnológica, pelo que se mantêm em vigor as disposições anteriores relativas a este instrumento?. E o instrumento já vinha de longe, pelo menos de 1988 (Despacho 42/88), e permitiu, por exemplo, posicionar na última unidade de Inglês (a 10ª, de frequência obrigatória para fins de classificação) alunos provenientes de países anglófonos, por razões óbvias. Mandava a lei que se registasse no livro de termos o dia em que a prova fora efectuada, com a indicação ?apto a frequentar a unidade x?.
A referida aluna frequentara há cerca de vinte anos o 7º ano dos liceus e, em situações como esta, há pessoas cujos percursos as levaram a esquecer por completo aprendizagens feitas, e outras que por razões diversas as aprofundaram. O  TDP obviava à falta de uma tabela própria de equivalências, pois a que existe apenas contempla cursos mais recentes, fazendo corresponder, por exemplo, a frequência com aproveitamento de Inglês do 10º ano do ensino regular à 4ª unidade do recorrente. O teste da minha aluna mostrara que ela estava ao nível de um 11º ano e, como tal, foi integrada na 8ª unidade. Tudo transparentemente legal e consensual. Só que subitamente as regras mudam, já no fim do jogo. É o princípio da alegalidade.  
Não dá para entender esta fúria legislativa, que parece ditada por alguém que viu o diabo numa modalidade de ensino que só contribui para a tão apregoada  qualificação dos portugueses. Sabemos que houve alunos do ensino regular que estrategicamente se matricularam no recorrente a fim de conseguirem, por frequência, a melhoria de nota que ali só poderiam obter por exame. Mas a ocorrência desses casos foi já acautelada em Janeiro de 2002 (Despacho n.º 3451/2002) ao proibir-se ? entre várias outras coisas ?  essa manobra no mesmo ano lectivo. Será que o legislador sabia? São tantas as Circulares, os Despachos, as Portarias! 
Porém, tão grave como o atropelo aos princípios da legalidade é que ninguém se faz ouvir, pelo menos de forma eficaz: nem alunos nem professores nem as suas organizações representativas. Terei estado desatenta? Ou será que já estamos mesmo por tudo e nada nos surpreende?


  
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Edição:

N.º 126
Ano 12, Agosto/Setembro 2003

Autoria:

Manuela Coelho
Escola Especializada de Ensino Artístico Soares dos Reis, Porto
Manuela Coelho
Escola Especializada de Ensino Artístico Soares dos Reis, Porto

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