Para perceber melhor a organização dos manuais escolares e os seus reflexos nos modos de trabalho pedagógico, publicamos neste dossier uma curta entrevista com Carlinda Leite, investigadora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, ela própria com experiência na produção de manuais escolares.
Partindo da sua experiência, que preocupações devem estar presentes na elaboração de um manual escolar? Há quem se refira aos manuais como um instrumento de normalização que não promove, entre outras coisas, as especificidades dos alunos e o trabalho de grupo...
Como é sabido, o discurso didáctico a que se recorre nos processos de formação escolar constitui um dos aspectos importantes para a aprendizagem dos alunos. Por isso, num manual escolar é importante o tipo de discurso que o caracteriza e que, como é evidente, resulta das concepções que orientam o(s) seu(s) autor(es). Pretendendo-se que a escola transforme o discurso científico num discurso didáctico compreensível para os alunos, é igualmente importante que os manuais escolares o façam. Pretendendo-se também que esse discurso didáctico estimule nos alunos a curiosidade, o espírito de descoberta e de análise de situações da vida, em vez de os ensinar a passivamente receberem um conhecimento já feito, é igualmente importante que os manuais escolares cumpram estes requisitos. Por isso mesmo, na concepção de um manual escolar, em minha opinião, deve ser dada atenção à linguagem científico-didáctica mas, também, ao modelo pedagógico que o manual veicula. A meu ver, dos autores e autoras de manuais escolares não se espera que apenas façam uma compilação de conteúdos. Espera-se que sigam um modo de os trabalhar que incentive alunos e professores utilizadores desse manual a percorrerem um verdadeiro caminho de construção do saber. E compete ainda, depois, aos professores, quando tomam decisões relativas ao manual que vão aconselhar aos seus alunos, optar por aquele(s) que melhor se ajuste(m) ao modelo de formação a que aderem ou que devem veicular. Se assim for, há menos probabilidades de os manuais constituírem meios de normalização e de uniformização. Apesar disso, é importante reconhecer que os manuais escolares nunca poderão ter em conta todas as situações relativas a contextos reais nem todas as características dos alunos que os utilizam. Por isso, a sua utilização tem de pressupor sempre um trabalho dos professores na adequação do discurso e dos processos de ensinar e de fazer aprender os alunos reais e tem de implicar que esses manuais constituam um dos recursos didácticos, e não o único recurso.
Concorda com a actual modelo de comercialização dos manuais escolares? Não deveria haver um organismo acreditador que reunisse elementos do ministério da Educação, associações científicas e de professores e editores?
Como é sabido, o processo de adopção dos manuais escolares é cada vez mais palco de enormes pressões. Existe actualmente no mercado um número de ofertas de manuais escolares que torna possível uma escolha, quando há tempo, disponibilidade ou quando as pressões não são maiores do que as vontades. Vai já longe a política do manual único que tinha de ser usado qualquer que fossem as condições das escolas e as características dos meios socioculturais e dos alunos. Às vezes há até que reconhecer que as ofertas são exageradas e impeditivas de uma análise cuidada, o que facilita escolhas comandadas por aspectos externos ao próprio manual. Recordo que há uns anos atrás o Ministério da Educação, na ideia de influenciar a escolha dos manuais existentes, encomendou uma avaliação dos manuais mais vendidos. O resultado foi também o Ministério ser sujeito a pressões enormes que tiveram como consequência a inexistência de qualquer efeito dessa avaliação (para além dos montantes que resultaram do pagamento às equipas avaliadoras). Considero, pois, difícil que a nomeação de um organismo acreditador resolva alguns dos problemas que o actual sistema de adopções acarreta. Para já, prefiro acreditar no bom senso dos professores e na sua capacidade para resistirem a pressões comerciais.
Os manuais deveria ser utilizados como um auxiliar e não como a única fonte para a construção da aprendizagem. O problema está, diz a Carlinda Leite, "no peso e na forma como os manuais são usados". É uma crítica indirecta ao trabalho dos professores?
Repetindo o que há dias disse, num outro lugar, não é aos manuais escolares que pode ser atribuída a responsabilidade da manutenção de procedimentos tradicionais nos processos de ensino. Disse, e volto a repetir, que o problema está no modo como esses manuais são usados e no peso que se lhes atribui. Com esta afirmação não estou também a querer atribuir a ?culpa? aos professores. Todos sabemos as condições de trabalho em que muitos dos colegas exercem a profissão, a falta de apoios com que podem contar, os parcos recursos de que podem dispor, a dificuldade em trabalhar em equipas, etc., etc.. No entanto, é evidente que também alguma da responsabilidade é dos professores e da cultura escolar que tem permitido continuar a manter processos de desenvolvimento do currículo que fazem do manual o único meio de informação e de construção do saber. Não podemos ignorar que actualmente se pretende romper com a ideia de um currículo que se esgota nos conteúdos. Aponta-se para ideias que pretendem que o currículo escolar se oriente para o desenvolvimento de competências. E, no quadro desta orientação, impõe-se repensar quer a estrutura de muitos dos manuais quer os modos como eles são usados no desenvolvimento desse currículo.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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