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Vender para dar

A loja da associação Emaús vende artigos que já não fazem falta aos seus donos para ajudar os sem abrigo

Quem espreita pela montra diz tratar-se de um antiquário. Lá dentro descobrem-se pedaços de quotidianos de várias vidas. Mobílias estilo João IV ou Luís XV. Livros de alfarrabista. Máquinas de escrever. Louças. Bugigangas. Aparelhagens. Discos. Roupa. ARTIGOS que deixaram de fazer falta aos seus donos. E que agora recheiam a loja da associação Emaús. OS preços SÃO quase simbólicos. MAS O produto da venda significa DINHEIRO NO BOLSO DE QUEM precisa.

Situada numa casa em restauro numa das ruas históricas da Baixa do Porto, a loja Emaús é a parte visível de uma associação que há 12 anos oferece uma alternativa de vida a quem faz da rua a sua casa. A troco de trabalho naquele que é o modo de sustento da Emaús (a recolha, o restauro e a venda de objectos usados que são oferecidos à associação) o sem abrigo recebe uma remuneração. Ou antes ?dinheiro no bolso?, para usar a expressão empregue na Emaús. Como explica Conceição Gonçalves, presidente da associação portuense, este modo de operar ?dá uma certa autonomia à pessoa que vive na rua e que, por norma, não gosta de estar dependente do apoio de instituições.?
Á vontade de dotar o sem abrigo de meios para se auto-financiar, junta-se a tentativa de o integrar socialmente. A concretização deste objectivo passa pela atribuição de responsabilidades na gestão do quanto há para fazer, diz a presidente da Emaús. Seja na recolha de pertences em casa das pessoas, no restauro dos artigos que se encontram danificados ou na manutenção da loja onde tudo é vendido. Um trabalho realizado lado a lado com voluntários que colaboram com a associação. O que concorre para promover a inclusão defendida por Conceição Gonçalves. Nessa perspectiva, ?se os braços são de todos, as opiniões de todos são igualmente válidas?, esclarece.
Além do trabalho, a Emaús está a tentar oferecer algo mais aos sem abrigo: alojamento. Para isso está a tornar habitável o andar situado acima da loja. Mais algumas vendas e é provável que até ao fim do ano haja dinheiro para reparar o que ainda falta, o telhado. Entretanto, a associação já da guarida a dois dos seus ?companheiros?, ex-sem abrigo, pagando-lhes um quarto numa pensão. Uma alternativa provisória até a obra estar concluída. Depois, a ideia é alargar a comunidade residente de modo a albergar, em instalações próprias, todos os que queiram deixar o relento da cidade.
Mas nem todos os que trabalham na Emaús deixam de viver na rua. E há quem nela procure abrigo apenas por um período e depois a abandone. É assim, desabafa Conceição Gonçalves: ?Temos de estar sempre preparados para receber mas também para ver partir as pessoas?.

Atractivos da vida na rua

Anos de vivência com os sem abrigo levam a presidente da Emaús a concluir que, apesar das dificuldades óbvias, a vida na rua tem muitos atractivos. ?Há uma experiência de liberdade total e de ausência de regras que os encanta.? Por isso há até quem faça da vivência de sem abrigo um estilo de vida nómada. Histórias não faltam. Umas dramáticas, outras românticas. Como a de um rapaz belga que não se importava de beber apenas um pacote de leite por dia desde que pudesse ver o sol nascer junto à praia. E que partiu após três meses de permanência na comunidade.
Gerir o dia-a-dia da Emaús significa, por isso, ter ainda de lidar com a diversidade de vivências e problemas emocionais que cada sem abrigo trás para a comunidade. ?A pessoa que vive na rua é alguém sem meio-termo?, constata Conceição Gonçalves e acrescenta: ?Num dia dedicam-se de uma maneira incrível ao trabalho e no outro entregam-se à preguiça.?
A Serafim Ascensão, sacerdote de ofício, é o animador social da comunidade Emaús. É ele a quem cabe o papel de pólo agregador de todos os ?companheiros?. ?Procuro antes de mais estabilizar emoções, mas sem deixar de ser firme quando necessário. As coisas nem sempre funcionam pela condescendência!?, explica.
Mas há situações em que a indulgência se torna indispensável. ?Já tivemos companheiros que deixaram a Emaús levando o que acharam ter mais valor!?, lamenta Conceição Gonçalves. Por vezes, quem comete o furto arrepende-se. Anda um tempo afastado. Até que, desabafa Serafim Ascensão, ?lá pede a um companheiro que ainda esteja ligado a Emaús para nos perguntar se pode voltar...? A resposta é sempre positiva.

Instituição: Emaús
Morada: Rua do Almada, 136/138 Porto
Telefones: 919829496 / 936509280


  
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Edição:

N.º 125
Ano 12, Julho 2003

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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