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As relações pais-filhos

VAMOS CONTINUAR A FALAR DE FAMÍLIA. E DE COMO ELA NÃO É A MESMA PARA CADA UM DOS FILHOS. NA MAIOR PARTE DOS ESTUDOS, O TRATAMENTO PARENTAL APARECE COMO SENDO A MAIOR FONTE DE DIFERENCIAÇÃO NO SEIO DA FAMÍLIA.

É o tratamento diferenciado dos pais (real ou percebido) que parece afectar o desenvolvimento dos filhos. Por exemplo, algumas investigações recentes referem que o tratamento diferenciado dos pais estava relacionado com o bem-estar dos filhos: o mais favorecido era o que apresentava maior nível de bem-estar; e, até, os filhos que tinham recebido mais expectativas parentais positivas eram, também, os que apresentavam maiores índices de ajustamento.
Os pais têm consciência que tratam os seus filhos diferentemente. Alguns pais exprimem frequentemente ansiedade sobre o papel que os seus próprios comportamentos jogam no desenvolvimento das relações entre os seus filhos. Isto é: para além de afectarem o desenvolvimento individual dos filhos, parece que parcialidade parental influencia também a qualidade das relações entre eles. Sobretudo, parece interferir no nível de conflitualidade entre os irmãos: a preferência e/ou a desigualdade do tratamento parental é responsável pelo desencadear de conflitos entre eles (a história de Caim, a de José e seus irmãos são, apenas, dois bons exemplos do que acabámos de referir). Considera-se, também, que a percepção da parcialidade parental tem repercussões negativas naqueles que percepcionam receber menos, na medida em que, como o observou, com perspicácia, Charles Dickens (1959): "no mundo restrito onde se desenrola a existência de uma criança, (...) não há nada que ela perceba com tanta acuidade e que sinta com tanta intensidade como a injustiça".
Uma das questões que é lícito colocarmos é se o tratamento diferenciado dos pais não é uma resposta adequada às diferenças de desenvolvimento dos filhos. Provavelmente os pais limitam-se a reagir às diferenças existentes entre os seus filhos. O que parece, em parte, verdade: em determinados momentos os pais tendem a favorecer o filho cuja situação é julgada como sendo a mais desfavorável (a mãe que cuida do seu bebé e que descuida os seus filhos maiores, enquanto o pai intensifica a relação com estes, é um exemplo claro não só da divisão de tarefas entre o casal, como daquilo que os pais sentem que é necessário fazerem num período específico do desenvolvimento dos filhos).
Ficamos, então, com a questão de saber se o tratamento diferenciado dos pais é causa ou efeito das diferenças (físicas e psicológicas) existentes entre os irmãos. É claro que as crianças são desiguais logo desde a nascença (quando nasce o segundo filho os pais têm uma clara percepção dessas diferenças...) e talvez o tratamento diferenciado parental seja, apenas, uma resposta ao comportamento diferenciado dos filhos.
Sobretudo os autores psicanalíticos têm enfatizado quanto o temperamento de um filho, assim como o próprio fenótipo deste, despertam, nos pais, um jogo complexo de fantasmas e projecções inconscientes que se reflectem no modo como estes se relacionam com ele ? a preferência ou a não-preferência pode encontrar aí uma explicação: um filho que se assemelha física e/ou psicologicamente a uma figura querida do passado dos pais pode mais facilmente ser amado do que se acontecer o inverso. Também uma característica objectiva como é o sexo da criança pode, logo à partida, condicionar a relação pais-filho, na medida em que é ou não o sexo desejado para aquela criança em particular (e pode ser o desejado para a mãe e não para o pai...).
Assim, pode concluir-se que há uma intricada relação entre as características (físicas e psicológicas) dos filhos e o comportamento dos pais relativamente a estes e que, se é difícil estabelecer uma relação de causa-efeito entre estes dois aspectos (como, aliás, é comum nas ciências humanas), é imprescindível considerar-se esta recursividade se quisermos perceber as diferenças nas relações pais-filhos. Isto é: se queremos estudar o tratamento parental, nada melhor que socorrermo-nos do modelo complexo do desenvolvimento humano proposto por Bronfenbrenner & Crouter (1983): "indivíduo x processo x contexto" ? que permite que se considere que, numa mesma família, os mesmos processos podem ter diferentes implicações para cada um dos filhos, por estes terem diferentes características e, por isso, viverem diferentemente o mesmo contexto familiar (sobretudo porque cada um o interpreta/percepciona subjectivamente).
E como em tudo na vida: conta mais a percepção do que a realidade... E até porque, provavelmente, o real, per se, não existe. Então, por mais igualitários que sejam os pais, os filhos nunca percebem (nem perceberão) que são tratados da mesma maneira.

Nota: este artigo é um extracto, ligeiramente alterado, do livro da autora recentemente publicado: Semelhanças e diferenças entre irmãos, Lisboa: CLIMEPSI Editores, 2002.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 125
Ano 12, Julho 2003

Autoria:

Otília Monteiro Fernandes
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro, Chaves
Otília Monteiro Fernandes
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro, Chaves

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