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Os outros também somos nós

"Nós quatro, eu com ela, eu com ela, eu por cima e eu por baixo..."
Tema de brincadeira

Essa era a cantiga de uma brincadeira de roda, da qual o nome não me recordo, mas que era assim: juntavam quatro crianças, geralmente meninas, numa pequena roda e batiam palmas, fazendo os mais variados movimentos com as mãos, ora batendo palma com a mão direita e a esquerda tocando nas mãos esquerda e direita das vizinhas dos dois lados, ora com a colega da frente ou do lado, ora por cima, ora por baixo e cantando essa cantiga que acompanhava os movimentos. Foi a imagem das mãos nesse bailado orquestrado na cumplicidade e na agilidade do jogo entre as meninas que me inspirou a iniciar ludicamente uma breve reflexão sobre a diversidade presente nas salas de aula, aqui especificamente uma sala de alfabetização de jovens e adultos. 
Era uma sala de aula em uma escola de arquitetura colonial, pé direito muito alto, janelas amplas, piso de madeira corrida, uma escada majestosa no saguão de entrada. Uma sala de aula em uma escola que guardava, em suas paredes-memórias, muitas histórias, e que foi a primeira Escola Normal [1] da Glória, na época em que o bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, era apenas uma grande fazenda de laranjais cortada pelo Rio Carioca, hoje escondido sob o asfalto de sua rua principal.  A história da origem da escola, de sua tradição em trabalhar com jovens e adultos, retomada com o curso de alfabetização, havia sido contada várias vezes aos alunos, que se orgulhavam de pertencer a uma escola com tanta história, incluindo agora aquela feita por eles nesse percurso escolar.  
João, Gilberto, Jovelina, Ailton, Maria, Josefa, Maria de Lourdes, Conceição são alguns dos muitos alunos que dividiram suas histórias, expectativas e sonhos conosco naquela sala de alfabetização. Apesar da singularidade de cada um, havia entre eles alguns pontos em comum, como, por exemplo, a maioria ser imigrante nordestino de áreas rurais, de serem negros ou mulatos, de trabalharem como empregada doméstica, porteiro, faxineiro ou servente de obras, e uma grande expectativa movida pelo desejo de poderem expressar seus pensamentos e fazer uso, com certa desenvoltura, das variadas funções sociais da escrita e da leitura de sua própria língua. E todos traziam, em cada matulão,[2] riquezas e saberes que, aos poucos, iam abrindo para que pudessem se somar ao que procuravam aprender naquele espaço.
Muitas vezes nos perguntávamos o que era mesmo que ensinávamos: não era apenas dar acesso a um código lingüístico que permitisse aos alunos um trânsito um pouco melhor nas cidades organizadas em torno da escrita, nem tão pouco assegurar um direito que lhe fora negado na idade adequada. O curso de alfabetização era muito mais do que isso, pois abrigava, em seu interior, possibilidades de se repensar as condições de existência, melhorar um pouco a vida mesmo em condições tão adversas, produzir coletivamente outras condições de convivência, de pertencimento, criar um espaço de solidariedade na solidão da cidade grande, descobrir que, apesar de ainda não saberem ler e escrever, sabiam e podiam tantas outras coisas, e que esses saberes muitas vezes não eram reconhecidos pela própria condição de analfabeto.
Essa proposta de alfabetização se apoiou em alguns princípios, tais como: a construção da identidade e a construção do "nós"; a valorização da cultura de origem; a expressão, a criatividade e a autoria; a negociação da proposta de trabalho com os próprios alunos e um entendimento de que a metodologia é processualmente renovável.
O reconhecimento e a valorização do jeito de ser e dos saberes de cada um enriqueciam o conjunto e fortalecia no grupo outra idéia de pertencimento, de nós, o que contribuiu, também, em um refazimento das identidades culturais, modificando uma identidade marcada por negativas, tais como: "não sei", "não posso", "não consigo", que confirmavam o movimento de negação de si e de sua própria história, para um movimento de mais afirmação de suas potencialidades, de seus saberes, de suas possibilidade de ampliação frente a novos conhecimentos.
Tal como na brincadeira, retomando a imagem do bailado das mãos, a cumplicidade, as redes afetivas do grupo, o pertencimento, possibilitavam um movimento que era coletivo, mas para o qual, cada um deles, com sua história, experiência e saberes, era fundamental.  

[1] Escola de formação de professores para as séries iniciais do ensino básico.
[2] Saco usado pelos retirantes nordestinos para carregarem os seus pertences, popularmente conhecido como matulão e imortalizado por Luís Gonzaga  na"canção ? ... trouxe a viola no matulão, trouxe o ganzá no matulão, trouxe a saudade no meu matulão, xote, maracatu e baião tudo isso eu trouxe no meu"matulão?.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 125
Ano 12, Julho 2003

Autoria:

Cleide Figueiredo Leitão
Univ. Estadual do Rio de Janeiro. Brasil
Cleide Figueiredo Leitão
Univ. Estadual do Rio de Janeiro. Brasil

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