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Um acontecimento

Estava eu sentado num velho café vazio, a tomar chá, quando reparei que no tampo da minha mesa caminhava uma criatura, que apenas posso descrever como sendo um duende de outra era. Uma criatura minúscula, usando casaco cinzento e trazendo consigo uma pasta ínfima. Fiquei tão surpreendido que, de momento, não soube que atitude devia tomar. Mas, ao ver que ele já tinha passado pelo meu maço de cigarros e se afastava esforçadamente para o canto mais afastado da mesa, sem me prestar a menor atenção. gritei: «Eh, lá!»
Deteve-se e olhou-me sem surpresa. Pare­cia que a existência de gente do meu tamanho era para ele assunto comprovado, uma coisa que teria sido assente havia muito tempo.
«Eh, lá!», repeti eu sem maneiras. «Bem... afinal quem é você?»
Encolheu os ombros. Percebi a minha falta de tacto. «Sim... claro... é perfeitamente normal», acrescentei rapidamente, «não há problema». E mudando de assunto. «Que novidades há?»
«Oh, está tudo na mesma."
«Sim, é isso», concordei astutamente. «Não há dúvida.»
Mas, fosse como fosse, nas profundezas da minha alma, não conseguia livrar-me da sensação que se havia apossado de mim no primeiro instante em que o vira, uma sensa­ção de excitante insólito. Estava-se num dia igual aos outros, eu era um homem médio. Cidadão de um país nem muito grande nem demasiado pequeno, que ia ganhando a vida sem intenção de fazer fortuna. Agora, que me tinha surgido a oportunidade de descobrir a significação profunda das coisas, não tencio­nava deixá-Ia escapar. Reunindo todo o meu engenho, falei-lhe habilidosamente.
«Tudo na mesma, diz você. Mas, sabe, às vezes sinto que toda esta banalidade da vida comum e inalterável é apenas pretexto, cor­tina de fumo, que esconde outro sentido mais amplo e profundo. Ou que mais não seja um sentido. Talvez estejamos demasiado ape­gados aos pormenores para sermos capazes de nos darmos conta de todo o conjunto das coisas, mas podemos pressenti-lo.»
Olhou-me com indiferença.
«Meu caro senhor», disse, «eu apenas sou um simples duende. Não vai esperar que eu saiba alguma coisa acerca disso.»
«Com certeza», concordei, «mas você não está preocupado por sentir que tudo é diferente daquilo que aparenta ser, para não falar já do facto de estarmos cercados por muitos mais fenómenos que os que consegui­mos identificar? Que as nossas pequenas experiências não são isso? Nunca foi ten­tado a furar o nevoeiro que obscurece o nosso verdadeiro campo de visão e procurar o que está por detrás? Perdoe-me, se o estou a maçar, mas raramente tenho a oportunidade de falar com alguém da sua espécie.»
«De modo algum», respondeu com delica­deza convencional. «Mas, quanto ao que você tem estado a dizer, realmente as pessoas andam demasiado ocupadas para encher a cabeça com tais coisas. As pessoas têm de tratar da vida, percebe?»
Não podia acreditar. Não prosseguiria nesta conversa por nada deste mundo. Se ao menos, graças à justaposição das partes, ela me desse uma oportunidade de descoberta, por empírica que fosse...
«Penso muitas vezes», continuei, seguran­do-o pelo botão do casaco com a unha do dedo, «penso muitas vezes que se devia tentar resolver os mistérios. Consideremos a arte, por exemplo. Sinto que a arte é uma fronteira, mas não sei dizer o que ela separa, não sei o que está de um lado e o que está do outro. Agora imagine que a arte é uma fronteira entre Você e eu. Onde é que a arte se situa?»
«Não sou um homem culto», disse ele, tentando em vão soltar o botão; eu fazia cin­quenta dele. «Tanto quanto sei, você pode ter razão, mas há tantas direcções... Só há uma coisa a fazer ? aceitar a vida como ela se nos apresentar.»
«Como ela se nos apresentar!», exclamei. Aqui estava eu face a alguém de cuja existência não tinha a mínima ideia; a própria descoberta do seu ser ali era um enorme passo em frente. Tinha de explorar o encon­tro. «Olhe, não vamos perder-nos com porme­nores, vamos apenas tentar encontrar res­posta para uma pergunta: que é a vida?»
«Meu caro senhor», respondeu paciente­mente, «já lhe disse que sou apenas um sim­ples duende. Como pode esperar que eu saiba coisas acerca disso? A vida passa, os dias passam uns a seguir aos outros, e cada um deles tem de ser vivido seja como for. Ao fim e ao cabo, você é um homem experimentado.»
«Precisamente. A vida passa. Nunca acre­ditarei que apenas passe, que não haja signi­ficações disfarçadas, fundos falsos, grãos de ouro escondidos. Não concorda?»
«Olhe bem para mim», disse a duende, mostrando muito menos impaciência do que seria de esperar, «acha que eu tenho aspecto de quem sabe as respostas? Sou eu um padre ou um filósofo? Os mistérios da vida, meu caro senhor, isso é bom para os livros, mas não vale a pena para nós. Não podemos espe­rar que o maná caia do céu.»
«Então você não me diz, não me quer dizer!» Estava numa fúria, perfeitamente com­preensível nas circunstâncias, já que sabia estar a perder algo. Desiludido e deprimido, larguei-lhe o botão do casaco.
«Pensa que é indiferença da minha parte». O duende parecia preocupado. «Mas dou-lhe a minha palavra que, mesmo quando o nosso pensamento segue as suas linhas, é muito difícil chegar a qualquer conclusão válida, porque estamos cercados pela dura e bem definida realidade. E é isso que conta. Não confunda a sua cabeça com o insólito e o estranho.»
«De verdade?», perguntei, sentindo-me de certa maneira consolado.
«Dou-lhe a minha palavra. E agora, queira desculpar-me, por favor. Tenho de ir. É a vida. Au revoir
Au revoir.
Prosseguiu a viagem atravessando a mesa e desapareceu atrás de um banco.

Mrozeck. O elefante. Editorial Estampa, p. 135


  
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Edição:

N.º 125
Ano 12, Julho 2003

Autoria:

Mrozeck
Escritor
Mrozeck
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