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A profissão mais antiga e mais desprestigiada do mundo

PAIS

A CONDIÇÃO DE CRIANÇA DURA APENAS UM INSTANTE. UM MINUTO DAS VÁRIAS HORAS QUE ESTRUTURAM O NOSSO SER HISTÓRICO (?) MAS SER PAI É UM SENTIMENTO QUE PARECE DURAR ATÉ AO DERRADEIRO DIA DA NOSSA VIDA.

Um dia, sem sabermos, procriamos. A paixão e o desejo desabafam entre dois que, sem darem por isso, passam a ser três. Durante um tempo, óvulo impregnado a crescer no ventre materno. A seguir, os gritos que causam o facto de dar vida. E, instantes depois, começamos a sentir a delícia de sermos pais. Condição que dura apenas um cisco da nossa vida, um minuto das várias horas que estruturam o nosso ser histórico. Procura amamentar-se, as caricias, o aquecimento do colo materno, e, às vezes, o cheiro do corpo paterno. Normalmente, a confecção não é a pronto-a-vestir: fica no topo de todos, o percurso de transferir ideias, afectividades, palavras, sentimentos. Especialmente, sentimentos da servidão do adulto que faz ver, à criança que procura, com olhos que ainda não vêem, qual é o seu lugar no mundo.
Sermos pais é um sentimento que parece durar até ao derradeiro dia das nossas vidas, mas na verdade é uma antiga profissão que dura apenas um curto espaço de tempo.
Porque a primeira questão que aparece na mente do novo ser, é perguntar-se, tal como Roy Lewis no seu texto de 1960, Por «que comi o meu pai?», na procura de o eliminar; imagina novas e melhores maneiras de brincar à John Locke de 1666, para que os seus adultos venham a criar um «Ensaio sobre Tolerância» com ele, ou a magicar, à Rousseau de 1754, uma explicação sobre «A origem de desigualdade entre os seres humanos».
A criança, na sua epistemologia em permanente desenvolvimento, magica, para depois, na sua puberdade, agir; no seu crescimento, praticar; na sua vida adulta, cortar relações, abrir outras, desconhecer a relação original, esquecer o amamentar, o aquecimento, o divertimento que teve na idade da nascença. Apenas por transitar de  um momento de subordinação aos adultos, ao momento de se confrontar com eles. Nem sabe ainda que, senão se confrontar, não conseguirá dois factos: ser esse novo ser, também ele, um adulto, com autonomia e independência necessárias para confrontar a concorrência da vida; ou ter o carinho distante e respeito por parte dos seus pais. Porque ou a criança mata os seus pais, ou nunca mais consegue ficar dentro do mercado de trocas no qual vivemos. A criança, sem saber, procura a morte do adulto dentro do seu processo de vida, define qual  o seu limite de tolerância, luta para desenhar a sua própria desigualdade. Como se a criança tivesse lido, entendido ou ouvido, os escritores invocados neste parágrafo.
Eis o motivo para pensar, sentir, dizer que, sermos pais, é a mais velha e desprestigiada profissão do mundo. Profissão, que por causa do processo de trabalho remunerativo, a palavra paternidade/maternidade definem. Desprestigiada por causa da luta  impingida entre seres humanos que, dentro de um curto espaço de tempo, passam a ocupar os mesmos lugares. Um dia, a criança virá a sentir a paixão que leva à procriação, precisará também de um sítio de trabalho remunerado, concorrerá com o seu adulto, mais envelhecido agora ? consequentemente, com menos capacidade para o trabalho lucrativo procurado pelo mundo globalizado ?, que deve perder, para que a nova geração ocupe os lugares libertados pelos seus progenitores.
Pequena, és apenas um instante. És criança apenas por um dia. És amamentada e aquecida por poucas horas dentro da tua História. Porque se não matas os teus adultos, nunca mais és, essa força de trabalho que a tua sociedade vê em ti. Mas, pequena, o problema não és tu, são os teus adultos: nunca mais querem ser largados, continuam com o hábito de mandar em ti, de procurar em ti a pequenada feita, dentro da sua paixão. O teu adulto será sempre esse ser que quer saber, até ao mais ínfimo detalhe, o teu quotidiano, a tua intimidade, os teus amores e, especialmente, o objecto do teu desejo. Questão que sempre vais ouvir dentro de um hábito cristão inquiridor ou de Inquisição. Famoso hábito elaborado ao longo do tempo com o intuito de controlar os teus movimentos e ajustar o teu agir, à ética dominante da tua História. História tão diferente da conjuntura vivida pelos teus pais, tal qual será a tua, quando o teu dia de procriação ou de paixão, chegar. Entende, pequena, que é bem mais difícil para o adulto largar o seu rebento que considera sempre seu, com base nos mitos definidos, faz milhares de anos, nas variadas doutrinas.
É tudo o que eu gostava de te ensinar, como é conveniente ao teu crescimento. Para saberes que os teus pais são apenas uma virgula no tecido da tua vida. Vida imensa, comprida e preenchida se conseguires tecer o carinho dentro do respeito entre gerações diversas, línguas diferentes, memórias baseadas em factos nem sempre conhecidos por ti. E, enquanto não entenderes isto, vou tomar vantagem para te beijar, acariciar, passear, mimar. Sei que um dia vais fechar a grande porta para abrires apenas uma janela que permitirá espreitar apenas o que for teu desejo, mostrar. Com respeito, essa janela será o olho da nossa cumplicidade, para podermos sermos pais, durante esse metafórico minuto, que sempre ansiamos.
Para esta minha querida pequena, quer mãe quer neta,  são estas palavras racionais de um adulto maior que muito vos ama. Tanto e quanto, vós permitis. Com respeito e aconchego. Com amor, esse sentimento que define os conceitos usados neste texto como uma pequena forma de exprimir racionalidade sentimental. De sermos pais. Antigos necessariamente. Desprestigiados por causa da necessidade de tu seres tu. A geração seguinte.


  
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Edição:

N.º 124
Ano 12, Junho 2003

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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