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Aprender a conviver ou: a paz como competência ética

PAZ

AS NORMAS QUE ENTENDEMOS NECESSÁRIAS PARA REGULAR A VIDA SOCIAL ASSUMEM UM CARÁCTER ÉTICO QUANDO SE IMPÕEM COMO IMPERATIVO DE CONVIVÊNCIA E NÃO DE MERA COEXISTÊNCIA.

Aprender a viver com os outros, a conviver, implica fazer da partilha, do diálogo e da ajuda mútua, sinais quotidianos de uma cidadania activa. Antes de constituir-se como reflexão sobre valores, princípios ou regras de conduta, a ética diz respeito a essa prática de convívio. Primordialmente, ela refere-se à relação que aproxima subjectividades misteriosamente separadas pelo segredo que mora dentro de cada pessoa, tornando-a especial e única. É aí que a paz começa, na disponibilidade para sentir, para escutar e para aprender com modos de ser e de viver diferentes. É da interacção entre pessoas e respectivas histórias de vida que emerge a riqueza do humano em toda sua complexidade e esplendor.
O convívio é gerador de sentimentos, de afectos, de ideias, de memórias, de desejos e de valores. Ele pode, também, ser gerador de conflitos, de frustrações e de riscos. Uma das tarefas da educação está aí, no ensinar a aprender a integrar a frustração, a dor, e até o medo, numa identidade progressivamente adulta. Porque não é possível falar em desenvolvimento e emancipação, de indivíduos e comunidades, sem considerar a ruptura com as rotinas securizantes que toda a abertura à alteridade implica. E a violência, a agressão, ou a indiferença, não são resposta para a insegurança e para a incerteza. A descoberta do outro, condição necessária para a descoberta de si mesmo, deve ser marcada pela consciência da interdependência e pelo sentimento de proximidade que suportam uma cultura de paz. Todavia, a promoção desta consciência e deste sentimento não pode ficar confinada à transmissão de conteúdos sobre a diversidade humana ou sobre os valores do pluralismo humanista. Em grande parte ela depende das práticas de convívio, de diálogo e de cooperação que conseguirmos instituir no quotidiano escolar onde o professor funciona como figura de referência. Como adverte o relatório elaborado pela comissão internacional presidida por Jacques Delors sobre educação para o século XXI, os professores que, por dogmatismo, matam a curiosidade ou o espírito crítico dos seus alunos, em vez de os desenvolver, estão a ser mais prejudiciais do que úteis. Esquecendo que funcionam como modelos, com esta sua atitude arriscam-se a enfraquecer nos alunos a capacidade de abertura à alteridade e de enfrentar as inevitáveis tensões entre pessoas, grupos e nações.
Enquanto prática de convivência, a paz não se confunde com atitudes de tolerância passiva, com indiferença, conformismo ou quietismo. Pelo contrário, a paz começa no movimento que rompe com o egoísmo e a auto-suficiência, traduzindo-se no prazer do encontro, na atenção, no cuidado e na acção solidária em favor do outro. Sem esquecer que aprender a conviver passa também pelo aprender a respeitar os espaços de solidão e de privacidade necessários à afirmação da humanidade em cada homem.
Ligadas à exigência de convívio, as palavras que dizem a paz podem morar no grito que teima em fazer-se ouvir ou na cumplicidade dos silêncios, mas nunca na cobardia que cala as vozes da justiça e amordaça a denúncia da violência que fere a dignidade humana. Tal como nos lembrava recentemente Caride Gómez, face ao abismo da guerra, urge tomar partido e assumir a obrigação ética de ensinar a aprender a dizer «não». Precisamente, a capacidade para dizer não à guerra começa num «sim» quotidiano em relação a todas as formas de convivência eticamente investidas. Começa na possibilidade de estabelecer e consolidar os laços materiais e espirituais que dão coesão e identidade às sociedades. Neste sentido, a paz está também nas nossas mãos, como proclamava o Manifesto 2000, desenhado por um grupo de laureados com o prémio Nobel por ocasião da celebração do cinquentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e assumido pelas Nações Unidas como compromisso para uma nova era. No lugar de uma cultura de guerra e violência afirmava-se a necessidade de promover uma cultura de paz assente nos valores da democracia, da justiça e da solidariedade. Os dias dramáticos que vivemos convocam-nos a todos, especialmente a nós professores, para a perseverança desta lição.


  
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Edição:

N.º 124
Ano 12, Junho 2003

Autoria:

Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto
Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto

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