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A Fossa

O Abílio vive no meio de um terrível abandono que partilha com mais quatro irmãos e de fome que chega a durar alguns dias, até à chegada do Rendimento Mínimo do mês seguinte. A mãe mora no café da aldeia, onde joga às cartas até às quatro horas da manhã para ganhar garrafas de Vinho do Porto. E ganha-as mesmo. A sua casa é um casebre que se vislumbra no meio da lama da entrada e por entre couves mais altas do que ele que servem para o caldo. Em dias de festa há arroz com chouriço e quando a sorte sorri lá vem uma iguaria sem igual: abre-se uma lata de feijoada e dá-se um pacote de batatas fritas a cada um. Quando não tem nada para comer, o Abílio alimenta-se da brincadeira da rua.
O Abílio passeia pela escola com um passo gingão e um sorriso de gaiato nos lábios. Quando a vida não lhe corre bem e chega um ralhete, põe uma cara de bicho do mato e amua. Mas passa rápido e volta o sorriso tímido ao seu rosto. Razões para amuar não tem, segundo diz a mãe.
Desde sempre que o álcool foi seu companheiro fiel e o coração balança entre o branco e o tinto, mas do que ele gosta mesmo é de sopas de burro cansado. Quando lhe falam nisso, acena com a cabeça, os seus olhos ganham um brilho especial e parece até lamber as pingas do precioso néctar que poderiam escorrer pelo canto da boca.
No outro dia, os meninos da escola foram todos a Esposende. Foram visitar a ETAR: Empresa de Tratamento de Águas Residuais. Vá-se lá saber o que quererão os doutos docentes com visita a tão pomposo local, poderia ele ter pensado. Ora bem, tem a ver com o projecto educativo do agrupamento, tem a ver com o projecto curricular da área geográfica, tem a ver com o projecto curricular da turma, etc. Desconhece porém o nosso Bilinho que o professor não acredita em nada disto e para não arranjar sarilhos com ninguém chamou ao seu projecto curricular ?A Aplicação da Teoria das Janelas de Oportunidade ao Projecto Curricular?. Se não surgirem janelas, o professor já disse a um amigo que não se importa de ser uma trepadeira para subir os muros. Mais do que teorizar sobre os projectos e de os encher de setas que na maioria das vezes não significam coisa nenhuma, importa ao professor que cada um possa construir o seu próprio projecto.
Mas voltemos à ETAR, que o Abílio não tem nada a ver com as dissertações psico-pedagógicas do professor. A dita ETAR deve ser bem longe pois o professor à partida da camioneta deu a muitos meninos meio comprimido para o enjoo. Sabia mal, mas não havia nada a ajudar para ir para baixo. Quanto a ele não havia perigo de enjoo: tinha ido em jejum, como sempre aconselhava a mãe, mesmo quando o passeio era de algumas dezenas de metros até à escola. O Abílio tem a certeza que a escola não é enjoativa: vai muitas vezes em jejum para a escola.
Chegados à ETAR depois de uma viagem realmente longa e enjoativa, a senhora engenheira responsável pela visita fez uma longa dissertação sobre a importância do tratamento das águas residuais, sobre a transformação da água na ETAR, sobre datas de entrada em funcionamento, sobre as grandes virtualidades deste sistema, sobre tudo. Sobre nada, como veremos mais à frente. Como se há-de importar o Abílio com a ETAR se ele não tem uma casa de banho decente e vai ?cagar ao eido?, como ele diz e como fazem os porcos que habitam consigo e que são o sustento para o arroz com chouriço?
Depois de se ter visto a água a entrar e a sair de máquinas mais ou menos imponentes, de ter reparado no cheiro a estrume que por ali se sentia, de ter ouvido falar de estudos de impacto ambiental, de se ter dissertado de forma altiva sobre a importância das bactérias e de ter percebido que as bactérias não passavam fome por comerem poluição, foi dado o tiro de partida para o regresso à escola.
À chegada, houve um colega que resumiu o seu sentimento quanto à visita de estudo ao referir que durara muito mais a viagem do que a visita propriamente dita, mas isso ainda era o menos e esta visita fizera mesmo confusão à cabeça do Abílio. Estava feliz por ter chegado. Ainda por cima não tinha enjoado. Era natural, os conselhos de mãe são sempre os mais sábios.
Foi para a cantina da escola pronto a comer a sua canja e o frango assado da praxe, que isto dos nitrofuranos ainda só existia em ficção científica e são males que não chegam às aldeias minhotas, muito menos a cantinas novas e acabadinhas de inaugurar, quando foi confrontado com uma questão de resposta óbvia:
- Aonde foste, Abílio? ? perguntou, simpática, uma das senhoras da cantina.
- Ver uma fossa cheia de merda. ? retorquiu ele, mais interessado na canja que aguardava em cima da mesa da cantina.
Aquela meia dúzia de palavras, proferida de forma despreocupada e descomplexada, foi a descrição mais perfeita da visita de estudo realizada pouco antes. O professor riu, mas andou a reflectir nesta frase lapidar que encerrou a visita.
Pois é, caro Abílio, até tu sabes que isto de projectos só resulta se cada um o sentir como seu. Se for importante para cada um de nós. Pena que outros bem maiores ainda não se tenham apercebido desse facto.


  
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Edição:

N.º 123
Ano 12, Maio 2003

Autoria:

Carlos Coelho
Professor, Braga
Carlos Coelho
Professor, Braga

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