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Postal de Santiago de Compostela

Diz-se que em Santiago de Compostela até a chuva é uma arte. Mas na cidade tradicionalmente chuvosa, hoje, o dia é solarengo. As ruas da cidade antiga que rodeiam a Catedral parecem ser iluminadas por uma luz divina entrecortada pelas sombras ocasionais dos monumentos. Há um espírito em Santiago? Uma atmosfera de religiosidade sorridente. Com a hospitalidade de Xosé e Víctor, os meus guias acidentais, o caminho até à Sé Catedral ganha contornos históricos.
A penumbra à entrada na Catedral convida a um primeiro acto de contrição moderado pelas luzes dos flashes das máquinas fotográficas dos peregrinos. O «Pórtico da Glória», obra de mestre Mateus, é dos cenários mais cobiçados da Catedral. Pacientes, os apóstolos, os profetas, os anjos, os condenados ao Inferno, os vinte e quatro anciãos do Apocalipse e o próprio Jesus Cristo posam benevolentemente para as objectivas.
Xosé e Víctor chamam a minha atenção para as expressões caricatas dos profetas Jeremias e Daniel. A santidade parece ter-lhes fugido dos rostos. Têm um sorriso comprometido e os olhares estão direccionados para a figura de uma mulher incrustada numa coluna que lhes faz frente. Xosé conta-me que a mulher era dona de um grande peito que os profetas estariam (maliciosamente ou inocentemente) a apreciar. Reza a história não oficial da Catedral que nos anos 40 a expressão dos profetas e os dotes físicos da mulher terão incomodado os franquistas. A tal ponto que o peito da figura terá sido ?polido? até aos limites da decência. Porém a expressão dos profetas manteve-se como que a denunciar a mutilação.
Alheio a estas ?estórias? está o Apóstolo Santiago. Afinal é ele o anfitrião do templo. Acima dele um Cristo ressuscitado mostra as palmas das mãos perfuradas na crucificação. A atenção dos peregrinos não está, contudo, em nenhum deles, mas sim em dois rituais que me dizem incontornáveis para quem visita a Catedral.
Um deles consiste em colocar a mão aos pés de David, uma das figuras que compõem a árvore genealógica de Cristo e que estão representadas na haste da coluna central, e pedir um desejo. Para facilitar o reconhecimento de David ao peregrino mais distraído existe uma reentrância na coluna à medida da mão direita. Uma vez colocada a mão há ainda que fazer uma oração sentida: Pai-nosso que estais no Céu?; Ave-maria cheia de Graça...; Confesso a Deus todo-poderoso e a vós irmãos que pequei muitas vezes? E só depois se faz o pedido. Xosé garante que funciona.
O outro ritual destina-se a aumentar a inteligência. Milagre que se consegue batendo três vezes com a cabeça no «Santo dos Croques» (Santo dos Galos) cuja identidade se diz ser a de mestre Mateus, o obreiro de toda aquela Glória. Feitos os rituais abandonamos a fila para os «croques», cada vez mais longa, e entramos para a nave central.
No interior da Sé, a escuridão toma definitivamente conta do espaço e para grande lamento dos peregrinos não há «flash» que lhe resista. Há, porém, um foco de luminosidade no término da nave central que ofusca os olhos. Na capela-mor tudo é banhado a ouro. E para culminar o esplendor dourado do barroco da capela está a estátua de Santiago à qual acedemos através do deambulatório. Apanhando o apóstolo de costas, manda a tradição que se lhe dê um abraço.
O contacto íntimo com Santiago é, no entanto, constrangido pela presença de um ?guarda-costas?. Sentado de terço na mão, um ?reformado? reza de olhos semi-cerrados, para se assegurar de que os peregrinos não atentam contra os dourados e as pedras preciosas incrustadas no também dourado manto do apóstolo.
Abandonamos a capela-mor. Mas antes da saída impunha-se uma espreitadela a um outro «ex-libris» da Sé: o «Botafumeiro». É o maior incensário do mundo ? pesa 80 quilos e mede 1,60 m de altura ?, data de 1851 e é obra de José Lousada. Só que para grande tristeza do meu guia, que me queria mostrar tamanha peça, só a pude ver em múltiplas miniaturas expostas nos carrinhos de venda ambulante de recordações. Resta-me ainda assim o consolo de levar comigo uma dessas miniaturas na mala, uma cortesia de Xosé.


  
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Edição:

N.º 123
Ano 12, Maio 2003

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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