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Puerocentrismo: o fim de um mito?

Luc Ferry, o ministro-filósofo francês, escandalizou recentemente o mundo pedagógico ao afirmar, sem rebuços, o que, afinal, todos já sabiam - ou deveriam saber -  mas não queriam que fosse declarado até para não terem de se convencer: a criança não deve demagogicamente ocupar o centro do sistema!

O que todos sabemos, com certeza, é que foi o chamado movimento da Escola Nova que, nos inícios do séc. XX e na sequência de uma interpretação reducionista da herança de Rousseau, impôs o pressuposto pedagógico (rapidamente tornado um tabu) da soberania da criança e, por consequência, do aluno.

Um advogado purismo pedagógico ? sedutor pela sua aura espontaneísta e contestatária ? rapidamente atraiu o fanatismo militante de muitos educadores-políticos que aí viram uma oportunidade de gerar uma revolução sem armas ou em que as armas eram as crianças, entretanto transformadas em rainhas por autênticos rituais de purificação escolar, tais como as assembleias gestionárias e os grupos de pesquisa, que, por si mesmos, assegurariam a autonomia dos alunos. No fundo, transferia-se para estes o que antes era apanágio dos professores, isto é, o poder.

Os professores, estigmatizados enquanto fiéis depositários das arbitrariedades de uma história marcada pelo dogmatismo, tiveram, no mínimo, de expiar as suas culpas, apagando-se no universo escolar. Tornaram-se guardiões da neutralidade cultural de espaços pedagógicos depurados, agradáveis e facilitadores da aprendizagem.

Se os contributos críticos do movimento da Escola Nova foram decisivos para a superação de muitas das rotinas da Sociedade e da Escola, é evidente também que a confusão que, desde o princípio, marcou o enovelamento do maximalismo dos slogans com o minimalismo das práticas, rapidamente impediu a autoavaliação e a autocrítica da coerência educativa das situações, de facto, vividas.

Mais espantoso, porém, é que a Escola Nova ? apesar dos seus fracassos ? instalou-se como uma alternativa crónica e, por isso, fossilizada. Ao chegar assim até aos nossos dias, inviabiliza sistematicamente a percepção das diferenças de sentido de novas propostas quer por parte de profissionais da educação que, por exemplo, com a pedagogia do projecto, acabam por obsessivamente repetir, pura e simplesmente, a não directividade própria daquele movimento, quer pelo lado dos detractores patológicos dessa não directividade que a perseguem como um pecado da Pedagogia.
Em tudo isto é espantoso que a Escola Nova seja sobretudo um fantasma que existe principalmente nos discursos dos seus mentores e nas diatribes dos seus adversários. Ela, na realidade, quase não existiu ? a não ser na medida em que os fantasmas se tornam reais - pois nunca as crianças foram livres e espontâneas, nem os adultos ? encavalitados aos seus ombros -  desapareceram da cena do poder.

Quais as consequências de tudo isto?

Muitas, mas de entre elas destacamos as seguintes:

  • As crianças, em fases do seu crescimento em que, para construírem solidamente a sua autonomia, necessitam da intervenção activa dos  educadores ? inclusive porque, em termos da adopção de valores éticos, são ainda heterónomas ? vêem-se prematuramente atiradas para desempenhos que exigem referenciais de um quadro de autonomia que efectivamente não possuem nem podem possuir a não ser  pela imposição de constrangimentos que, afinal, são violentos.
  • As crianças, por efeito da assunção ideológica do repúdio à partida  legítimo de formas de exploração de que historicamente foram e são alvo, tornam-se presas de utopias lúdicas que as privam de uma relação emancipadora e educativamente exigente com o trabalho. Quando as exigências sociais do trabalho chegam, elas confrontam-se com incapacidades derivadas da persistência de vivências infantis unidimensionais que, entretanto, as infantilizaram e amarraram a fragilidades com que a sociedade, depois, não contemporiza.
  • As crianças, subordinadas ao lema do princípio do prazer, perdem as capacidades de sofrer, de resistir e de esperar. Sem cairmos numa perspectiva agónica da educação, a verdade é que não há pessoas integrais, nem sujeitos autênticos, que não sejam capazes de mobilizar, quando necessário, aquelas competências: precisamente para poderem ser livres, felizes e protagonistas das suas vidas. Caso contrário, as crianças virão a ser adultos que capitularam e os adultos crianças que o não são.
  • As crianças, sob a hegemonia do direito de aprender, ficam alienadas do dever de ser ensinadas como se a criatividade não emergisse necessariamente de uma concomitante transmissão e assimilação da herança cultural, como se Galileu não conhecesse o aristotelismo ou Picasso o realismo.

As crianças, assim, não são o que são: crianças agora, adultos amanhã, possíveis adultos que serão as crianças que foram. O puerocentrismo foi, afinal, é bom não o esquecer, mais uma invenção dos adultos. De adultos eternamente assolados por uma culpa de que, se calhar, nem sequer são responsáveis, mas de que as crianças são, com certeza, vítimas.

As crianças não estão no centro do sistema. Estão na sua mira...


  
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Edição:

N.º 123
Ano 12, Maio 2003

Autoria:

Adalberto Dias Carvalho
Fac. de Letras, Univ. do Porto
Adalberto Dias Carvalho
Fac. de Letras, Univ. do Porto

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