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Guerra! - Uma carta para os meus descendentes

Meu querido puto,

Andas a brincar na tua bicicleta de duas rodas, pelas ruas do bairro. Ris e pareces muito feliz e contente. Até largaste as fraldas, por pensares ser adulto ao manipulares a tua bicicleta. Corres e não só ris, como atacas. Atacas qual carga de cavalaria, perante um inimigo imaginário, esse que é desenhado pela tua ideia da guerra. Para ti, a guerra passa por ser uma brincadeira. E ainda bem. Porque, meu puto, seria bom que a guerra fosse uma brincadeira e não essa realidade espantosa, dura e terrível, que vês reflectida na cara dos teus pais. Uma cara de tristeza e de depressão. Palavras que nem entendes, como não deves entender a palavra guerra.
A guerra, meu rapaz, é a tramóia pela qual os adultos trepam. Trepam e reptam, na procura de abater os que consideram seus inimigos. O que é ser inimigo, deves pensar. Se tu apenas tens os outros rapazes do bairro, para te emprestarem berlindes, piões e vídeos, a convidarem-te para guloseimas e também para casa dos seus pais a beberes um copo de leite. Mas, se eu oiço o que Alice Miller, diz no seu texto Expliquem o terror às crianças, não posso expor-me a que me vejas triste e sem motivos evidentes para ti. Alice Miller, ao responder a uma pergunta sobre os efeitos da televisão na mente dos mais novos, quando se fala da guerra no Afeganistão, da prometida guerra contra um ditador e o seu povo, diz que essas imagens não são traumáticas por não afectarem a existência física de pessoas como tu ou da tua família. No entanto, acrescenta que se tu ou os teus amigos foram espancados e humilhados em pequenos, as imagens da guerra trazem-vos lembranças de uma outra memória de experiências traumáticas sofridas pela mão das pessoas que vos são queridas e respeitadas, como docentes ou outros adultos perto de ti. Se para andares de bicicleta, o avô berrou, gritou e empurrou, até ficares sem desejos de te chegares ao artefacto que, felizmente, te dá prazer, porque nada disso aconteceu contigo, nem com os teus amigos. Tens a sorte de viveres num lugar de paz e refugio, nos braços dos teus pais. Felizmente, quando vês imagens da guerra, na tua casa, és convidado a desenhar o que vês, o que contam as histórias, por que é que os senhores do mundo desejam esmagar os proprietários de um tesouro diferente do da Ilha Encantada que leste  no livro de Robert Lewis Stevenson, Treasure Island de 1888. Esse encanto de romance que faz a tua imaginação voar por cima do facto das mortes de crianças como tu, pais e mães como os teus, ou amigos da tua casa.
Doa ou não, devo dizer-te que o mundo está em guerra e que muita pequenada está a morrer. Devo contar-te essas tristezas para que, pelo menos, confies em mim, porque eu confio em ti ao não disfarçar a realidade contada por tantas pessoas,  vistas nas fotos dos jornais e  emissões televisivas. Vês figuras hierárquicas em debate, um dia a dizerem sim para esmagar, e no outro a dizerem não, para angariar  apoios nos seus planos de genocídio e a morte maciça de adultos. Para ficarem com as riquezas deles. Para guardarem os tesouros dos outros dentro dos seus bolsos. A guerra, meu filho, é o acto mais sangrento passível de acontecer, por subordinar ao terrorismo dos que têm mais força, os inocentes que vão ao altar do sacrifício, os seres humanos não possuidores de outros bens além dos seus próprios corpos, memória, ideais, família, princípios e objectivos de vida. É duro dizer-te isto, mas sei que é melhor que o saibas por mim e não por teorias que tencionam retirar o medo do teu real, na base de modelos  socialmente construídos.  Longe do teu andar sem fraldas e de bicicleta de duas rodas, na paz da tua rua e no jardim, teu e de teus pais. Deves saber que os que atacam, dentro de um mesmo país ou de fora, são pessoas que não viveram a alegria que tu vives ao pé dos teus que tanto carinho te têem dado. Pessoas não apenas sem bicicleta, mas pessoas magoadas na idade mais tenra, sem os seus adultos saberem o mal que lhes faziam, quer à criança, quer à sociedade, quando mais tarde essa pequenada cresce, fica adulta e com poder.
Ninguém nasce mau. Ninguém herda o mal. O mal é fabricado pela relação dos adultos com e para as crianças, adultos enraivecidos a tomarem conta de putos como tu, doce e meigo, a decidirem se tiras as fraldas porque os teus amigos também as tiraram, ou porque é o melhor para ti. Os teus amigos têm bicicletas e tu também, trocam esse brinquedo, o mais amado do mundo para ti, por te permitir voares e competir com os outros, na calma do lar. Mas, meu puto, é um lar ameaçado pelas consequências da guerra que faz os preços dispararem, ficamos sem recursos e sofremos a morte dos inocentes, porque os senhores do mundo, assim o pensaram. Toda a criança é inocente e pura, capaz de entender o que o rodeias, se os seus adultos, queridos por eles, lhes explicarem o que está a acontecer. Eu falo contigo, na medida que tu perguntas. Alice Miller diria que o que faz mal, é ocultar a todos vós como é possível configurar o mal, fabricar a maldade.
É à tua inocência que falo, uma inocência que vive no meio de um mundo que luta para entesourar e para poder mandar sobre os que parecem mais fracos. Uma inocência que é meu dever preservar, ao explicar-te o real, cada vez que perguntas ou vês noticiários a mostrarem as calamidades do mundo no qual vivemos, ouves na rua, ou entendes o que os adultos e outros graúdos falam perto de ti. Mau pai seria eu, se não fosse capaz de explicar de forma directa e simples, o mal que acontece dentro do nosso mundo. Falando com carinho e palavras simples. Mas, falando. Como é o meu dever de adulto para ti. Não desejo mais sociedades que lutem umas contra as outras. Para despertar essas pessoas, era e é necessário, dizer a verdade dura e crua, para assim ficar limpa para ti. E para todos os adultos entenderem que ocultar a verdade é o pior mal que pode acontecer na nossa vida, que é curta e problemática, mas este é mais um problema para o adulto te dizer.
Um beijo meigo do teu

Raúl Iturra
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, ISCTE/CEAS
Amnistia Internacional
Dia do Pai de 2003.

Nota: baseei as minhas ideias no meu trabalho de campo e em dois textos de Alice Miller retirados da NET: ?The ignorance or How we produce the Evil? e ?Tell children the truth about Terror?, que recomendo para os adultos lerem. E nas minhas próprias emoções, devastadas pelo anuncio de uma guerra que ninguém quer.


  
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Edição:

N.º 122
Ano 12, Abril 2003

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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