?Têm vindo a divulgar, nas últimas semanas, um conjunto de resultados escolares do ensino secundário (?) com o intuito muito claro (?) de demonstrar que não há determinação socio-económica na definição das classificações dos alunos? [e] que é o ?actor humano? que justifica que as escolas dos concelhos desfavorecidos obtenham bons resultados.
Alguns meios de comunicação social têm vindo a divulgar, nas últimas semanas, um conjunto de resultados escolares do ensino secundário, relativos ao ano 2002, apurados concelho a concelho, com o intuito muito claro, aparentemente o único, de demonstrar que não há determinação socio-económica na definição das classificações dos alunos. Adjacente a este intuito e como que cavalgando-o, aparece a afirmação de que é o ?actor humano? que justifica que as escolas dos concelhos desfavorecidos obtenham bons resultados. ?É o entusiasmo, o desempenho dos concelhos executivos e dos professores que fazem a diferença?, lê-se no jornal ?Público? do dia 17/03/03 como sendo uma afirmação proferida por um dos especialistas a quem se deve um estudo pormenorizado sobre a matéria. A insistência com que tal perspectiva vêm sendo propalada quer com certeza dizer mais alguma coisa do que a simples e louvável preocupação de manter informada a população portuguesa, que lê jornais ou segue outros órgãos de comunicação, acerca da tão equilibrada distribuição nacional das competências dos nossos alunos do secundário. Ora, parece não ser ousado admitir que o que está em desenvolvimento é fazer vingar a ideia de que não sendo as condições materiais globais, quer das famílias, quer das institucionais escolares, as que detêm uma responsabilidade decisiva na construção do sucesso escolar dos alunos, é legítimo esperar que o factor humano não defraude as reais capacidades dos nossos alunos. Isso significa que os professores estão perante um quadro novo de responsabilização a que não devem furtar-se. O especialista acima referido insinua, até, que seria desejável um bom grau de entusiasmo no exercício profissional. E embora isso não seja evidente no contexto das afirmações apresentadas, parece depreender-se que o entusiasmo pode desempenhar um papel importante na eliminação dos possíveis efeitos negativos das débeis condições materiais. O que poderá significar que os défices estruturais são compensados pela sobre-aplicação dos profissionais que lidam com essas situações. É claro que será oportuno fazer aqui algumas precisões. Seja a primeira para afirmar que se, de facto, se reconhece hoje a importância que a relação pedagógica desempenha na construção dos saberes dos alunos e nas disposições que os fundamentam, isso não significa que ela se exerce no vazio material, social e institucional. Em segundo lugar, importa ter presente que o exercício profissional dos professores, tal como o de outros profissionais, é sensível à qualidade dos contextos socio-organizacionais, mas não está provado que as lideranças fortes geram equipas entusiastas, como parece querer impor o movimento que se vem anunciando. De resto, seria de extrema importância questionar-se sobre o que se entende por ?entusiasmo?, uma vez que há fundadas suspeitas de que tal expressão possa estar a ser mobilizada para a campanha de moralização do país. Por outro lado, é bastante questionável que se possa caracterizar como entusiástico um contexto profissional atravessado por impulsos de forte competitividade e concorrência, tanto objectiva, como subjectiva, como não pode deixar de ser aquele em que vêm sendo colocadas as escolas face à lógica da ?rankinguização?. Talvez venha aqui a propósito aquela história saborosa contada por GOMBROWICS, um romancista polaco que põe em cena, no seu romance «Ferdidurke», um professor diante dos seus alunos, a quem se dirige nestes termos: ?Tomem nota para um trabalho de casa: ?por que é que as poesias de Jules Slowaki, esse grande poeta, contêm uma beleza imortal que desperta o entusiasmo??. Neste momento, um dos alunos contorce-se nervosamente, lamentando-se: Mas, por que é que eu não me entusiasmo absolutamente nada??
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