O relatório avisava: ?é um aluno que apresenta dificuldades de controlo dos impulsos agressivos e manifesta o maior desinteresse pelas aprendizagens escolares?. Foi considerado ?aluno incapaz de se adaptar à escola?, para além de manifestar ?uma já evidente tendência para a aproximação ao álcool?. Pudera! O Bino fizera o tirocínio com a avó. E afiançava-me, muito tempo depois, que ?aquilo nem era vinho, era uma zurrapa, porque a avó Zefa já tinha uma grande conta de assentar na mercearia, e na tasca já nem a podiam ver e muito menos lho vendiam?. Relutante às ?aprendizagens escolares?, o Bino aprendeu a vida na busca de mantimento, que a reforma da avó não chegava sequer para a pinga. Especializou-se em assaltos a hortas e pomares. Aos quatro anos, era hábil na fisgada certeira e na ferradela pronta no braço do hortelão que o surpreendesse em flagrante. O Bino não conheceu pai nem mãe. Consumada a parição, a progenitora abalou para França, no rasto do presumível pai. Nunca mais deu notícia. Uma avó o acolheu num tugúrio de chão de terra batida. O Bino cresceu entre maus-tratos e fomes de dias. Ao fim da tarde, engolia uma malga de sopas de cavalo cansado, enquanto aguardava uma avó invariavelmente embriagada e de terço na mão. Avistando-a, o Bino descalçava as botas de surrobeco herdadas do falecido avô e atirava-se para debaixo das mantas. Ao cabo do primeiro mistério, a avó já cabeceava, arrastava a voz na ave-maria e acabava por sucumbir aos alcoólicos eflúvios, adormecendo encostada ao seu ombro. O Bino deixava-se anestesiar pela respiração da velha e afundava-se num suave torpor até de madrugada. A pequena leira em redor do casebre era pedregosa. Quase nem ervas cresciam, muito menos coisa semeada. De modo que o sustento e o aquecimento central do Bino, da avó Zefa e do Malhado eram as ovelhas do pequeno rebanho que com eles coabitava. Sabemos que o brincar e o jogar são característicos de um tempo de expansão do conhecimento de si mesmo, do mundo e dos sistemas de comunicação. E que a infância acaba quando alguém reconhece que a sua vida deixou de ser um jogo maravilhoso, ou quando alguém proíbe outro alguém de brincar. O Bino soube-o quando a avó Zefa o fez levantar da cama, numa frígida madrugada, aos quatro anos mal feitos. - Hoje, és tu quem leva as mequinhas ao monte, que eu não me tenho de pé. Deixa-te levar pelo Malhado, que lá chegas. E chegou. Pelo meio da tarde, o cão guiou o pequeno rebanho no regresso a casa, com o Bino a reboque, esfomeado e com os pés descalços fustigados pelos cardos. Nunca mais ficaria no aconchego das mantas para além do nascer do sol, e o Malhado viria a ser seu mestre e única companhia até aos sete anos de idade. Um dia, ?uma senhora bem vestida, bem cheirosa e aprumada? (palavras que o Bino me ditou) espreitou para dentro daquele tugúrio partilhado por animais e gente, e perguntou se a avó se chamava Josefa da Conceição. Disse vir da parte das autoridades e que as autoridades tinham mandado uma carta à avó do neto que a escola reclamava. A avó retorquiu que não senhor, que não tinha recebido carta coisa nenhuma e que, ainda que tal cousa lhe chegasse, nenhuma serventia teria por das letras nada saber. De nada valeu a ladainha à avó que das letras nada sabia. O único proveito que a avó Zefa obteve da ?senhora bem vestida, bem cheirosa e aprumada? foi uma magra pensão de sobrevivência, tão magra que mal dava para encomendar meia dúzia de garrafões. Sem pastor, o que restava do rebanho foi arrematado pelo Luís Vendeiro. O Malhado foi servir outros senhores e o Bino transformou-se num degredado de fundo de sala. No dizer da mestra, o moço era coisa ruim e insubmissa e nem com porrada lá ia. Entremeava sessões de palmatoada com fugas para o monte e para junto do Malhado, fugas invariavelmente interrompidas pelas frequentes visitas da ?senhora bem cheirosa?. O Bino acabou por ser internado numa instituição da cidade. E, se a guarda conseguia surpreendê-lo nos montes que ele tão bem conhecia, mais facilmente os agentes da autoridade o capturavam na cidade em que se perdia em tantos lugares de se ocultar. Com dez anos feitos, foi transferido para uma escola de ?última oportunidade?. À semelhança de muitos outros casos de ?insucesso? que a essa escola aportaram, o Bino vinha recomendado e acompanhado de um grosso relatório de pedopsiquiatria. Apesar dos dez anos feitos, o Bino aparentava não ter mais de seis ou sete. Marcado pelo raquitismo, baixo, franzino, atarracado, parecendo não ter pescoço (como diziam alguns dos seus companheiros), juntou-se aos pequenos que vinham à escola pela primeira vez. Caminhava bamboleando-se, olhando de soslaio para tudo e para todos. A certa altura, um professor pensou que aquele miúdo de aparência frágil estava em apertos e à procura de uma casa de banho. Aproximou-se e, com extrema delicadeza, inquiriu: - Precisas de alguma coisa? A resposta, numa voz grossa e zangada, deixou o professor estupefacto: - Ó chefe, onde é que se mija, carago? Nos primeiros dias passados naquele novo e estranho mundo de aprender, ainda que o não soubesse, o Bino enfatizava o sentido lúdico da escola (o termo schola tem o significado etimológico de ócio...), embora fosse notado na hora do recreio pelo exagero na distribuição de pontapés e cuspo. O seu reportório de insultos era vasto. O impropério aplicado a preceito, na ponta da língua e da caneta, era uma das suas competências mais notadas, ainda que não constasse do currículo formal. Mas essa competência foi abalada numa assembleia em que se provou que os ?palavrões? usados pelo Bino não constavam do dicionário. E, se não constavam, não existiam, pelo que a Assembleia deliberou que o Bino teria de repensar o seu discurso e refazer o repertório. Esmerou-se. Passou por um processo de profunda reelaboração cultural e amiúde recorria à sinonímia, para gáudio dos companheiros e satisfação dos professores. Para que se perceba o trajecto de reparação dos danos por que o Bino passou, transcrevo, a título de exemplo e entre muitos que poderia citar, um depoimento deixado pelo Bino Bouças na folha afixada no mural do ?Acho Mal?: ?Eu acho mal que os meninos vão à casa de banho defecar, que façam as necessidades e depois deixem a sanita toda cagada?.
|