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Pedro Silva (ESE de Leiria) em entrevista a ?a Página?

Docente da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Leiria desde 1985, Pedro Silva tem formação de base em Sociologia, área em que se licenciou pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa em 1980. Desempenha também funções de Presidente da Assembleia de Representantes, Coordenador do Departamento de Ciências Sociais e Director do Curso de Professores do 1º Ciclo do Ensino Básico. É também membro do Secretariado e do Conselho de Redacção da revista Educação, Sociedade e Culturas, assim como do Centro de Investigação e Intervenção em Educação da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. A sua investigação incide principalmente na área da relação escola-família, sobre a qual tem vários artigos e livros publicados, sendo sobre ela que se doutorou, em 2001, com uma tese em Sociologia da Educação intitulada "Interface Escola-Família, Um Olhar Sociológico - Um estudo etnográfico no 1º ciclo do ensino básico", que serve de tema a esta entrevista.

O que o levou a escolher a relação escola-família como tema central do estudo que serve de base à sua tese de doutoramento? E porque razão enveredou pelo método etnográfico?

A escolha deste tema deveu-se, por um lado, ao facto de a minha formação de base  ser Sociologia. Nesse  sentido, interessou-me saber até que ponto existia ou não aquilo que designo no estudo por uma clivagem sociológica no relacionamento entre as escolas e as famílias.
Por outro lado, era um tema que eu já vinha investigando, e realizá-lo no âmbito de um doutoramento permitiu-me fazê-lo com outro fôlego. Tinha já participado numa série de projectos de investigação colectivos, alguns publicados, mas interessava-me ir mais além. O método etnográfico de pesquisa, que ainda não é muito utilizado entre nós, aparece, assim, associado a esta vontade. É uma metodologia que, apesar de ter o inconveniente de ser mais morosa, tem a vantagem de aprofundar e compreender melhor os processos sociais.

A relação entre a escola e a família é uma área ainda pouco estudada em Portugal?

Era uma área pouco estudada até há dez ou quinze anos. Daí para cá tem começado a ser objecto de um crescente número de estudos, constatável, aliás, pelo volume de obras publicadas sobre o tema.

Refere a dada altura do seu estudo existirem diversas perspectivas sobre a participação dos pais na escola, e que mesmo aquelas que se mostram a favor de um maior envolvimento aceitam-no com alguma reserva. Porquê esta resistência?

A resposta a essa questão quase que poderia dar origem a um outro estudo...
De facto, constatei que há diferentes perspectivas por parte das professoras envolvidas no meu trabalho relativamente à participação dos pais e das famílias na escola, existindo, por vezes, uma diferença significativa entre o discurso e a prática. Mesmo nos casos em que há um discurso mais favorável ao estreitamento da relação com as famílias e esse discurso é  coerente com a prática, ela não vai muito longe no sentido de aprofundar essa relação. Há sempre um "território" que fica salvaguardado.
Apesar de não passarem de hipóteses, diria que essa atitude se explicará, em primeiro lugar, pelo contexto de um sistema de ensino bastante centralizado no qual os professores são como que "submergidos" por um conjunto de directivas que limitam a sua margem de manobra. Nesse contexto dá-se quase uma reacção no sentido oposto, de tentar salvaguardar alguma da sua autonomia.
O outro factor determinante para essa atitude de resistência está, na minha opinião, relacionado com a formação, já que os professores não foram, e em grande parte continuam a não ser, preparados para se relacionarem com as famílias. Apesar de haver um discurso progressivamente favorável a esta prática, ela é relativamente nova para os professores e eles sentem que nem sempre têm mecanismos de resposta à altura das solicitações. E tendem a reagir mantendo uma distância segura, o que, de algum modo, é natural.

Essa resistência não poderá advir também de uma reacção de carácter corporativo?

Sim, que eu diria ser típica de qualquer profissão. Todas as  professoras envolvidas neste estudo foram formadas antes do 25 de Abril, num contexto de apelo à passividade, ao conformismo, à não afrontação do poder. Isso também acaba por ter reflexos no que se prende com uma cultura de participação, de cidadania.

Que balanço se pode fazer da participação dos encarregados de educação nas Assembleias de Escola?

Por aquilo que se sabe, essa participação peca por défice ou caracteriza-se, em geral, por um perfil de baixa intensidade. Isto por razões várias. Em primeiro lugar porque os professores mantêm essa resistência de que falávamos há pouco. Depois, porque a larga maioria dos pais não tem habitualmente contacto com o meio escolar, não domina o funcionamento quotidiano das escolas, das relações formais e informais que se estabelecem... exceptuando os casos em que os pais são, eles próprios, professores, o que é uma situação particular.
Claro que não se pode esperar que pais e professores aprendam a colaborar mutuamente de um momento para outro. Aprende-se a colaborar colaborando, a participar participando... É uma aprendizagem longa, tanto mais se tivermos em conta que os cidadãos não são formados para a participação. Nesse aspecto temos uma cultura atávica, quase se diria com raízes ancestrais.

Jogos de poder

Numa das passagens do seu estudo refere que o relacionamento entre famílias e escola é uma relação de culturas e, logo, de poder. De que forma se conjuga esse poder?

A abordagem da relação escola-família enquanto relação entre culturas não é muito vulgar, e tentei, através dela, perceber como se articula com os problemas da intermulticulturalidade. E ela acaba por ser uma relação entre aquilo que é a cultura escolar - que tem sido caracterizada pelos sociólogos, e não só, como uma cultura urbana, de classe média - e a cultura ou culturas locais. Em muitos casos há uma relação de mera continuidade, dado tratar-se de um mesmo meio sócio-cultural, mas noutros contextos verifica-se uma distância significativa. Nestes casos, esse factor pesa nesta relação e remete para a tal clivagem sociológica a que me referia no início.
Como refiro no estudo, e parafraseando George Orwell, perante a escola "alguns pais são mais iguais do que outros", já que, de facto, nem todos têm a mesma informação e a mesma capacidade de intervenção. E quando os professores constatam - e muitas vezes se queixam - que são os mesmos pais a aparecer na escola não percebem porquê. É algo que muitas vezes não é entendido por parte da escola e dos professores. E não se trata de uma coincidência, há razões de ordem sociológica que ajudam a perceber essa desigualdade.
Mas este é um fenómeno ainda pouco estudado, e no meu trabalho procuro chamar a atenção para isso mesmo, tentando perceber como é que a relação escola-família acaba por ser uma relação entre culturas e, enquanto tal, uma relação de poder - chamemos a coisa pelo nome.

Outra das conclusões do seu estudo refere de que nas associações de pais há uma grande predominância de profissionais de classe média e um número crescente de professores...

Sim. E esse crescimento é confirmado, inclusivamente, por dirigentes da própria Confederação das Associações de Pais (Confap).

Porquê essa tendência?

Esta evolução também não é uma coincidência. É um fenómeno sociológico que se prende, em grande medida, com o contexto histórico português. O movimento associativo de pais desenvolve-se a partir do 25 de Abril de 1974, num período de crise do funcionamento normal das escolas, e constrói-se em torno de uma certa atitude de confrontação para com os professores. É um movimento que criticava o exercício da greve e considerava mesmo os professores como uma classe irresponsável e pouco profissional. É natural que num movimento destes não se registasse a presença de muitos professores...
A pouco e pouco assiste-se a uma lenta transformação e os órgãos dirigentes das associações de pais começam a ter uma atitude diferente, a ver os professores como parceiros e a reivindicar pontos em comum. Pode dizer-se que é uma evolução inerente ao processo democrático dos anos oitenta. A partir dos anos noventa essa tendência começa a ter maior expressão, visível, nomeadamente, no facto de muitos pais-professores passarem a dirigir um número crescente de associações de pais.
Apesar de não se poder generalizar esta ideia, o facto é que existe uma predominância de profissionais de classe média mesmo quando as escolas se situam num outro meio sócio-económico, que é o caso de uma das escolas que eu acompanhei no meu estudo, situada num meio operário da Marinha Grande. Apesar desse contexto, não há praticamente operários na associação de pais. Inclusivamente, a única mãe professora daquela zona está na associação de pais.

É isso que o leva a afirmar que os pais-professores tendem a assumir-se como actores sociais na escola, desempenhando um papel de agentes duplos?

Uma das questões que levanto no meu estudo - e neste capítulo há ainda muito pouca investigação, quer a nível internacional quer nacional - debruça-se sobre o facto de os pais-professores poderem ser uma espécie de agentes duplos ou, pelo contrário, uma ponte privilegiada entre a família e a escola.
Um dirigente da Confap confessou-me certa vez encarar com preocupação o facto de existir um número cada vez maior de professores à frente das associações de pais porque, na opinião dele, fazia com que estes não fossem "beliscados". Ou seja, indirectamente ele afirmava que esses pais-professores desempenhavam o papel de defesa dos seus colegas.
Depois, é comum ouvir por parte dos professores que os seus colegas, enquanto encarregados de educação, são os "piores", os que levantam mais questões, porque habitualmente interagem numa relação de igualdade. Ou seja, há perspectivas perfeitamente antagónicas sobre o seu papel.
No entanto, há que reconhecer que o facto de conhecerem o sistema por dentro pode fazer destes pais uma ponte privilegiada entre os dois meios e fazer dela uma vantagem na actuação das associações de pais. É uma espécie de pau de dois bicos...
Outra questão interessante - e seria bom aprofundar a investigação sobre este assunto  - indica que o facto de haver ou não uma correspondência entre o nível de ensino dos pais-professores e a escola onde eles representam a associação de pais pode levar a situações extremas de cumplicidade e de tensão.
Numa das escolas de 1º ciclo abordadas no meu estudo, por exemplo, existia uma relação de quase conflito entre as encarregadas de educação, docentes do ensino secundário, e a professora. Na escola de meio operário, por oposição, a única professora que integra a associação de pais é também ela docente do 1º ciclo, estabelecendo-se uma relação de clara cumplicidade.
No caso em particular da primeira escola, terá pesado o facto de as mães-professoras terem transportado para a sua prática de dirigentes associativas a experiência organizacional do ensino secundário, completamente diferente daquele que caracteriza o ensino básico.
Aliás, quase no final do meu trabalho descobri, através de um interessante texto da autoria Licínio Lima e da Virgínia Sá, que no anteprojecto de Lei de Autonomia das Escolas, o conhecido 115-A, que cria a Assembleia de Escola, existia uma proposta que previa a não participação nos órgãos de escola de pais-professores do mesmo nível de ensino e de funcionários da escola, o que, de algum modo, confirma a minha teoria.

Uma relação "armadilhada"

Que papel têm as crianças nesta teia de relações? Chega a utilizar o conceito de "go-between" para caracterizá-lo...

Esse é um conceito do sociólogo suiço Phillipe Perrenoud, que se refere a elas como as "eternas esquecidas" desta relação. O que ele chama a atenção, e muito bem, é que elas são um actor social longe de terem um papel neutro nesta relação. Elas são não só portadoras de mensagens, cumprindo o tal papel de "go-between", como referiu, o que já por si é um papel importante, como são uma mensagem em si mesmas, na medida em que são portadoras de sinais que podem constituir uma fonte de informação para os dois lados.
Neste capítulo, os miúdos chegam mesmo a ser uma espécie de moeda de troca entre os pais e a escola. Alguns pais têm-me confessado que por vezes não assumem determinadas posições em relação aos professores porque receiam que os filhos possam ser  indirectamente afectados com essa atitude.

Fala também da relação escola-família como uma "relação armadilhada" por, na sua opinião, poder constituir-se como uma fonte de reprodução social e cultural...

Esse é porventura um dos aspectos menos explorados desta relação. Existe actualmente uma extensa bibliografia sobre este tema, especialmente a nível internacional, mas penso que a maioria é marcada por um carácter eminentemente apologético, isto é, limita-se praticamente a sublinhar as vantagens que podem decorrer dessa boa relação. Isso é um facto inegável, mas não se pode esconder que é uma relação impregnada de todo um conjunto de armadilhas que podem transformar a relação no oposto daquilo que se pretende.
Quando digo que estamos perante uma relação armadilhada é não só porque ela pode contribuir para reproduzir desigualdades escolares, que são também sociais, mas por poder produzir outros efeitos que têm sido pouco explorados. Como o efeito pigmaleão, como eu lhe chamo, através do qual os professores, muitas vezes através de um mecanismo subconsciente, tendem a criar expectativas mais positivas em relação aos miúdos cujos pais são mais activos, que mais os questionam sobre o percurso dos filhos, e a encarar a ausência sistemática como um sinal de desinteresse. O que muitas vezes não corresponde à realidade...
Ou seja, é uma relação armadilhada no sentido em que pode conduzir, com alguma facilidade, a efeitos opostos àqueles que são pretendidos. De qualquer modo, gostaria de chamar a atenção para o facto de me referir a esta relação como armadilhada partindo do pressuposto de que ela poderá ser uma relação desarmadilhável. Nesse sentido, não estamos perante uma fatalidade sociológica.
Acima de tudo, e na minha opinião, creio estarmos perante uma relação sobre a qual se têm feito correr rios de tinta mas que continua a ser pouco problematizada.

Sem pretender recorrer a comparações simplistas, até que ponto é possível estabelecer um paralelo entre a nossa realidade e a de outros países europeus? Ao nível legislativo, por exemplo...

No final do anos 90 realizou-se um estudo onde ficou patente que a legislação nos doze países que integravam a Comunidade Europeia estava cada vez mais próxima, apontando para aquilo que se poderá designar por um consenso legislativo. Esse mesmo estudo, da autoria do investigador belga Mark Bogdanovitch, dava também conta da distância significativa entre a legislação e a prática. Para demonstrá-la  o autor utiliza uma escala de um a quatro e, talvez sem grande surpresa, Portugal aparece no último grupo, onde a distância é maior. À cabeça encontrava-se a Dinamarca, onde os pais, na prática, têm um papel predominante, apesar de, nos últimos anos, a escola ter vindo a reapropriar-se de algum poder.

Será que esse poder de participação não estará relacionado com o papel da sociedade civil? Na Dinamarca, por exemplo, a sociedade civil tem tradições que remontam ao final do século XIX...

Apesar de ser cauteloso em relação a essas comparações generalistas, diria que neste caso haverá alguma relação. Nos países onde existe uma sociedade civil tradicionalmente mais forte, onde o sistema educativo aparece sobretudo a partir da iniciativa comunitária, assiste-se, ainda hoje em dia, a uma relação estreita entre a escola e a família.
Nos países onde existe uma tradição de Estado centralista a distância é maior. Embora haja excepções, como é o caso francês, onde, apesar de o sistema educativo ter raízes centralistas, existe  uma forte tradição do movimento associativo parental. Nos Estados Unidos, por exemplo, por razões históricas, os pais têm até o poder de vetar a contratação de docentes e de funcionários, o que, em alguns casos, pode funcionar como um instrumento positivo.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 121
Ano 12, Março 2003

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Pedro Silva
Escola Superior de Educação de Leiria
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Pedro Silva
Escola Superior de Educação de Leiria

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