Página  >  Edições  >  N.º 121  >  Mito, violência e beleza - Aprendendo com as artes de adolescentes em situação de risco

Mito, violência e beleza - Aprendendo com as artes de adolescentes em situação de risco

Inicio este artigo fazendo o convite para colocarmos em diálogo dois grandes autores (Barthes e Certeau), buscando compreender as possibilidades de posições diferentes sobre o mito da violência. Termino-o mostrando modos como adolescentes em situação de risco lidam com essa questão, em seu cotidiano tão duro de internos em uma instituição.

Com o objetivo de realizar a crítica ideológica da cultura de massa Roland Barthes constrói uma semiologia do mito e nos diz que: «a nossa sociedade é o campo privilegiado das significações míticas» (Barthes,2001, p.158) (1) . A partir dessa posição, faz a releitura de textos e imagens (que para o semiólogo tem o mesmo valor, posto que ambos são signos) da cultura contemporânea como sendo um tipo particular de mensagem sempre carregada de uma ideologia oculta. Por isso, afirma que «o mito é um sistema particular, visto que ele se constrói a partir de uma cadeia semiológica que existe já antes dele: é um sistema semiológico segundo».(Barthes, 2001, p.136). Para ele, portanto, o cinema, a publicidade, as revistas, as artes, a cidade seriam veículos deste «sistema semiológico segundo» que irá «piratear» os signos de outras linguagens para impor significados novos sempre carregados de ideologia. Assim, a capa da Paris-Match, revista de variedades francesa muito popular nos anos 50, com a foto de um negro trajando o uniforme do exército francês, batendo continência para a bandeira francesa e sorrindo, representa o próprio mito do imperialismo. Como fica o consumidor do mito? O que o faz "engolir" passivamente esta linguagem parasitária? Barthes assim se expressa sobre essas questões:

«Na verdade, aquilo que permite ao leitor consumir o mito inocentemente é o fato de ele não ver no mito um sistema semiológico, mas sim um sistema indutivo: onde existe apenas uma equivalência, ele vê uma espécie de processo causal: o significante e o significado mantêm, para ele, relações naturais. Pode exprimir-se esta confusão de um outro modo: todo o sistema semiológico é um sistema de valores; ora, o consumidor do mito considera a significação como um sistema de fatos: o mito é lido como um sistema fatual, quando é apenas um sistema semiológico». (Barthes, 2001, p.152)

A partir daqui inicio o diálogo anunciado. Se o consumidor do mito é tratado por Barthes como receptor de significados e leitor cego já que as esferas criadoras de sentido do nosso tempo, para este autor, são os produtores dos mitos, entendemos que  a idéia central desse sistema semiológico pressupõe que o consumidor do mito não tem qualquer possibilidade de autoria ou de reinterpretação, pois afinal, nem percebe o mito como linguagem, aceita-o como fato. Aos consumidores do mito restaria apenas fazer seu papel passivamente e completar o ciclo da comunicação em nossa época.
Para Certeau (2), no entanto, na sociedade da cultura de massa que impõe seus produtos, os praticantes do cotidiano produzem "usos" ou "maneiras de fazer" diferentes do simples consumo. Certeau afirma, então, que essas «táticas constituem as mil práticas pelas quais usuários se re-apropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural »(Certeau, 1994, p.41).
Mas em que possíveis "usos" das mitologias pensaria Certeau? Ou ainda, de que forma seus "usos" poderiam alterar o significado das mensagens?
Proponho que vejamos essas questões a partir do mito da violência no Brasil de hoje. A artista plástica Rosana Palazyan (3) realizou uma exposição (4) no Rio de Janeiro, onde pretendeu  representar e refletir a violência. Em uma de suas instalações, a artista reuniu um grupo de estranhos objetos: são amuletos feitos por meninos internos em instituições para menores infratores.
A artista descreve estes objetos como sendo feitos a partir de pedaços de caneta esferográfica. A este tubo é encaixado uma ponta feita com pedaço do cabo de escova de dentes. Estes fragmentos de plástico colorido são meticulosamente polidos no chão áspero dos dormitórios. As peças são coladas com sumo de casca de laranja. No interior destes "relicários" os meninos colocam pedaços de papel onde escrevem o nome de suas mães e namoradas. Depois de prontas, estas peças ganham brilho com pó de azulejo e são ofertadas às mulheres queridas para que usem junto ao corpo como lembrança de seus autores.
Rosana Palazyan relata que a direção da instituição na qual estes meninos são internos proibiu a confecção desses objetos alegando que eles têm a forma de balas de fuzil.
O momento de extrema insegurança  social e miséria em que se vive, nas grandes cidades brasileiras, com a  população e o crime organizado armado "até os dentes" e com a proximidade de crianças e jovens das armas de fogo, pode explicar, talvez, porque a proibição foi decretada: a forma "bala de fuzil" carrega o mito da violência, naquelas formas coloridas e transparentes. Estes amuletos, mesmo sendo lindos e lúdicos, são também afiados e astuciosos.
Essas "balas de fuzil" feitas pelos adolescentes internos representam força e proteção, não há dúvidas. Mas que outros "usos", no sentido que Certeau dá ao termo, estariam fazendo estes jovens do mito da violência?  Pensemos no trabalho que deve dar moldar estas formas tão precisas sem as ferramentas adequadas. Pensemos nos riscos clandestinos que estes escultores correram ao confeccioná-las. Pensemos em como estes objetos se tornaram uma espécie de "moda" naquela instituição, fazendo do desrespeito ao poder um gesto coletivo, social. O mito da violência materializado sob a forma "bala de fuzil", aqui,  humaniza.
O mito é recriado por seus consumidores. Ao escreverem seus afetos femininos no interior das "balas de fuzil" estes adolescentes inscrevem novos "usos" ao mito, incluindo amor na violência, ou melhor, indo além desta, em um contexto no qual ela é dominante, indo até a criação artística por amor.

(1) BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2001.
(2) CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano. Petrópolis, RJ:Vozes,1994.
(3) Rosana Palazyan é artista plástica e nasceu no Rio de Janeiro em 1963.
(4) A exposição chamou-se Rosana Palazyan, ficou exposta até outubro de 2002 nas salas C/D do Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro, teve curadoria de Paulo Herkenhoff, reuniu trabalhos realizados entre 1997 e 2002  que giravam em torno da violência urbana a partir de questões como religião, sexualidade e infância, traduzidas em forma de delicados objetos bordados e instalações, com algumas imagens reproduzidas nesse texto.

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 121
Ano 12, Março 2003

Autoria:

Maja Vargas
Univ. do Estado do Rio de Janeiro UERJ, Brasil
Maja Vargas
Univ. do Estado do Rio de Janeiro UERJ, Brasil

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo