Página  >  Edições  >  N.º 121  >  Matar em nome de que?

Matar em nome de que?

O Império e os seus súbditos anunciam ir fazer a Guerra em nome da paz, da democracia e da segurança do povo americano. Antigamente matava-se em nome de Deus. Alguns muçulmanos ainda se matam, e matam, em nome de Alá. Mas, pondo de parte a retórica, o Império do cinismo e do dinheiro, agora está disposto a matar  em nome do petróleo, da indústria armamentista e do poder de um punhado de gente rica e gananciosa. O resto são pretextos.

O Governo americano diz  que faz a «guerra preventiva» para defender «interesses vitais» americanos. No caso presente, «interesses vitais» são a segunda maior reserva mundial de  petróleo que jaze sossegadamente no subsolo iraquiano. «Interesses vitais» são também  o domínio do petróleo do Irão e da Arábia Saudita e a possibilidade de drenar com segurança o petróleo e o gás da Ásia Central até ao Mediterrâneo. «Interesses vitais» americanos são ainda a possibilidade de escoar material de combate e de dar mais trabalho e lucro à poderosa indústria de guerra. Durão Barroso, bacocamente, também defende o «interesse nacional» que, neste caso, se fica pela esperança de nos caber em sorte, após a Guerra, uma xícara de petróleo e uma botija de gás.

Vão para a Guerra com a confiança de quem?

Há quem diga que a confiança política  é apenas um «cliché». De facto, as fidelidades políticas  são muito voláteis. Já a confiança pessoal e profissional, bem como o saber, são elementos indispensáveis. O trabalho em comum, a criatividade, a actividade artística, produtiva, social, cultural, política, precisam de se ancorar no saber e nestas formas de confiança. Se o saber e a confiança pessoal e profissional são necessárias  a toda a actividade humana, mesmo que particular, são ainda mais indispensáveis  quando se trata da actividade colectiva de uma sociedade, de uma nação, de um país. Ora, ficou claríssimo, depois das manifestações de 15 de Fevereiro, que os partidários da Guerra, não dispõem de nenhuma espécie de confiança dos povos que dizem governar. Os povos, esmagadoramente, não confiam no discurso político e nos argumentos tontos que lhe são apresentados pelos governos partidários da Guerra. Existe neste momento uma fractura enorme entre governos e povos. Os governos vão para a Guerra sem a confiança do povo.

Não ter a confiança do povo é democrático e normal em política?

Alegam os advogados dos governos defensores da Guerra que estes não devem governar tendo em conta as sondagens. Os arautos da direita adoram este argumento. Mas não ter em conta as sondagens é também encolher os ombros face à vontade dos povos. Significa reduzir a democracia ao simulacro do acto eleitoral periódico. Significa despedir o povo da política. É governar autoritariamente. É esquecer despudoradamente  os compromissos assumidos nas campanhas eleitorais. É reduzir  a acção governativa à defesa dos interesses da diminuta mas poderosa classe dominante.
Os papagaios do neoliberalismo vão repetindo, sem entenderem o alcance do que dizem, que os governos devem tomar medidas impopulares, isto é, contrárias ao interesse do povo, mas que correspondam ao «interesse nacional». É evidente que por «interesse nacional» se entende aqui o interesse da classe dominante ? «o que interessa aos que dominam o mercado, interessa ao país». Hoje, governar contra a vontade do povo é substituir este pelo mercado. É trocar a cidadania pelo negócio. É subordinar os interesses dos povos aos interesses dos capitalistas que dominam os mercados. É considerar os manobradores dos mercados como as novas divindades perante as quais só nos resta ajoelhar e dizer amém. Estas opiniões, propagandeadas pelos sacerdotes do neoliberalismo, sejam eles economistas ou jornalistas, arrastam-nos para a ditadura dos interesses dominantes.

Haverá uma só forma de fazer política como afirmam os do «pensamento único»?

Existem, no mínimo, políticas consultivas e políticas confrontacionais. Cada uma destas formas, ou famílias, apresenta muitas variantes. O facto de vivermos um tempo em que o neoliberalismo é hegemónico, não significa que a política se reduza a um só modo de se fazer. O confronto político continua a ser uma realidade. Mesmo aqueles que transformam o mercado em divindade e o neoliberalismo em religião dominante têm de se conformar com a diversidade que a realidade nos apresenta.
O traço grosso das políticas consultivas coloca a tónica na auscultação dos interesses e vontade do povo e em agirem tendo em conta esta vontade. Esta prática é, em principio, mais democrática, mais respeitadora dos cidadãos e mais aberta ao concreto da vida dos povos. Pelo contrário, as políticas confrontacionais acentam no pressuposto de que o bom governo é aquele que defende os interesses de entidades abstractas como o mercado, a economia, o crescimento económico, numa palavra, os mercados. O traço grosso acentua o autoritarismo da governação, o desrespeito dos interesses da maioria, o reforço do poder  da minoria rica e dominante.
Na actual conjuntura, os defensores da Guerra querem convencer-nos de que só há um modo de agir na cena internacional: devemos ajoelhar, orar ao deus capital, e submetermo-nos aos interesses do Império emergente.

Estamos de novo condenados a regressar à barbárie?

O facto de, conjunturalmente, estarmos a ser governados por bárbaros, não significa que estejamos definitivamente condenados à barbárie. A História é feita de avanços e de recuos. A humanidade tem feito o percurso, de ida e volta, entre o campo da barbárie e o da civilização. Alguns de nós passam a vida tentando transportar um grão de pó do campo da barbárie para o da civilização. Fazemo-lo acreditando enriquecer o solo civilizacional.
Mas dada a natureza humana, não é de admirar que, volta não volta, o vento sopre contra os esforços civilizacionais e o grão de pó volte ao campo primitivo. Apesar de tudo, a História tem-nos mostrado que vale a pena persistir na luta contra a barbárie. Hoje o mundo é mais  civilizado do que há um século e o muro que defende a civilização dos ventos da barbárie será mais forte daqui a quinhentos anos.
Na actual conjuntura, o Governo do Império apresenta-se-nos com uma arrogância e impudor sem precedentes. Ao pé de Bush e do seu séquito, até o ditador Sadam passa por  menino de coro. O Império quer impôr a todos a sua lei. A alma do capitalista é o dinheiro e o mercado justifica todas as suas acções. O Imperador, qual marioneta, desempenha  o papel que os donos do petróleo e do armamento lhe destinaram. A cobardia, associada ao jogo dos interesses mais mesquinhos, leva governo atrás de governo a capitular face ao novo imperador do mundo. Reina a ditadura do cinismo, da cobardia e do cálculo. Reina sobretudo a mentira, a hipocrisia, a ausência de escrúpulos e a violência como armas políticas. Aos cidadãos do mundo cabe o dever de, na primeira oportunidade, mandar para casa esta joldra de politiqueiros sem honra e sem vergonha. É imperioso o seu despedimento político sem justa causa. Em nome da civilização.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 121
Ano 12, Março 2003

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo