Penso muitas vezes em vocês, colegas jovens, em princípio de carreira. Sermos professores obriga-nos ? julgo que mais do que a qualquer outro profissional ? a pormo-nos na pele do outro, seja ele colega, aluno, pai ou mãe. É um exercício fundamental para podermos avaliar com alguma justeza a imensidade de situações problemáticas com que diariamente temos que lidar e a que temos de dar resposta, sem lamechice, com rigor e com dignidade. Vocês, que nasceram já num país democrático, não experimentaram o medo nem a coragem de exprimir uma opinião ou assumir uma atitude fora do senso comum. Pelo menos é essa a experiência que tenho através das sucessivas gerações de alunos que conheci nas minhas aulas, onde se abordam sem peias os mais variados temas da actualidade. E porque a partir de Abril de 74 podíamos falar de forma livre é que nós, professores, tínhamos a imensa preocupação de não inculcar juízos de valor , mas sim os valores eles mesmos; de incentivar a procura de informação, a reflexão, o raciocínio honesto e sem preconceito; de não os deixarmos instalar-se comodamente na imobilidade maniqueísta, em que tudo o que vem dos ditos bons é bom e tudo o que vem dos ditos maus é mau. Queríamos que cada um dos nossos alunos construísse de forma livre e lúcida o seu código ético, desenhasse o seu programa de vida e encontrasse o seu próprio caminho. Em suma, que fosse um cidadão responsável, consciente e solidário. Vocês foram nossos alunos e, pelos profissionais que de entre vós conheço, verifico que o sentido da responsabilidade está bem presente no cuidado com que preparam as aulas e organizam actividades didáctico- pedagógicas, com que observam a evolução de cada aluno, com que procuram identificar e resolver problemas não só de aprendizagem mas também de atitude perante a escola e a comunidade. Verifico o vosso interesse em ouvir a nossa opinião, dos que estamos já perto da reforma, e só espero que o saldo das nossas discussões seja tão positivo para vocês como é para nós, que quem lucrará serão os nossos alunos e, com eles, a sociedade que irão construir. Será pura coincidência que a minha escola e o meu grupo sejam tão privilegiados que só recebam a nata dos jovens professores? E será sorte minha só travar conhecimento com colegas que me fazem continuar a acreditar que vale a pena o nosso trabalho? Sei que a vida para a maioria de vocês é difícil. Muitas vezes longe de casa e da família ? tendo de decidir entre fazer 200 Km por dia, com gasolina e portagens, ou pagar uma segunda renda, e sem que essas despesas possam sequer ser declaradas para IRS ? têm ainda de ouvir os nossos governantes e os papagaios de serviço insinuar que os funcionários públicos ganham de mais para o que trabalham; vocês que, nem é preciso fazer contas, pagam para trabalhar! Pouca gente sabe ? e os que sabendo alinham no coro são perversos ? que vocês têm de assumir nessas escolas a leccionação de níveis de preparação da máxima exigência; que são permanentemente postos à prova pelos mais temíveis, embora também geralmente mais justos avaliadores que são os alunos; que têm de ser criativos para os interessarem com matérias imprescindíveis à sua compreensão do mundo e dos fenómenos da vida; que têm de ser credíveis para se imporem, pois pela aparência é fácil que vos tomem como um deles; que partilham duplamente a ansiedade dos alunos perante os resultados que lhes permitem o acesso às suas vias de opção. Além disso, quem valoriza o facto de frequentemente interpretarem papéis de pai, de mãe, de irmão mais velho, de terapeuta familiar? Cada vez se exige mais dos professores. E não vale a pena pensarmos em reconhecimento se não lutarmos por ele. Vocês, a meu ver, porque pertencem a gerações pouco politizadas, não tomam consciência do vosso valor social. Sei que continuam a educar os vossos alunos para a verdade, para a justiça e para a paz.. Mas um dia eles terão de competir fora da escola, e como é que vocês os preparam para ver premiados os que mais grosseiramente achincalham esses valores, se não admitirem que a realidade é essa? Dizem-me que a vossa luta passa sobretudo pelo interior de vocês mesmos e que o percurso é longo. Mas não será assim que muitas vezes se divorciam das grandes questões, de cuja resposta depende o destino da humanidade? É isso que neste momento se joga. Vale mais a vida humana na sua dignidade ou os interesses mesquinhos de alguns homens que a história seguramente virá a classificar de loucos, como sempre faz mais tarde ou mais cedo ? O delírio do poder é uma doença perigosa e ainda por cima contagiosa. Como nas demais, os mais vulneráveis são os mais inseguros, os mais débeis, os de menos defesas e os que são herdeiros genéticos da patologia ou de outra afim. Merecem ser estudados e tratados. Mas entretanto, cuidado com eles. São peritos na sedução, na manipulação, na batota, e os mais incautos são facilmente enredados numa causa com a qual nada têm a ver. Não é só a SIDA que precisa de prevenção. O delírio do poder, ouso dizer, mais ainda, porque é ele que está na origem de tudo. Pois não foi ele o pecado original? Por isso, queridos colegas, é tempo de alerta. Não se deixem intimidar pelos magos da economia que consultam as constelações numéricas transnacionais e nos aterrorizam com sentenças de inevitabilidade. Exijam explicações claras. Nunca lhes aconteceu pedir a um desses magos que fosse mais claro, e ele meter os pés pelas mãos e mudar de assunto, ou escudar-se com palavreado pseudo-técnico para os fazer crer que são vocês que não estão à altura de Sua Sumidade? Não vão nisso. Vocês sabem bem que o discurso do verdadeiro cientista é cristalino. Nem se deixem impressionar pelos novos eufemismos de guerras profilácticas; terapêuticas e cirúrgicas. Palavreado intelectualoide para encandear papalvos com a visão salvadora do hospital e encaminhá-los para a morgue. Como iriam vocês repreender um educando que partisse a cabeça do colega à pedrada só porque as pedras estavam ali e podiam ser usadas pelo outro contra ele? Não se pode aceitar passivamente o que não faz sentido. Não receiem dizer que não percebem o que não percebem. É que no mundo real, tal como na fábula, o rei vai nu.
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