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Uma carta para 2003

Ler, às vezes, dá desejo de escrever. Sim, desejo; não é apenas vontade! E, como desejo que se preze, partilhado tem que ser.
Do que (re)li, já cuidarei de dar notícia. Quanto à partilha, que melhor forma há de, sem paixão, que para isso mais convém haver presença física, ser cúmplice com amor do que escrever uma carta? Nem que seja para mais tarde a olhar... ou rasgar.
Escreve Nemésio em ?Mau tempo no canal?: [...] naquele viver estúpido e presumido da Horta estava decretado que uma rapariga da sua condição não podia ganhar a vida. Era uma vergonha receber dinheiro pelo suor do seu rosto! Mas não ter onde cair morta e ficar de um dia para o outro mulher de herdeiro cobiçado, filho único de um velho podre de rico, ou destes menos felizes que têm que repartir  com os outros a bolada, acabando por lhe sair a sorte grande de um irmão tísico ou tolo, de uma irmã dócil que se entrega pouco a pouco nas mãos de um confessor e acaba mirrada num convento... ? isso, na moral da Horta, era extremamente chique!, isso não era uma vergonha!...?
Então, como mandam os cânones, aí vai epístola.

Meu querido 2003
Como te sentes nesta curta experiência de vida?
O útero da tua mãe não deve ter sido paraíso para o teu corpo nem para a tua alma. Pensando bem, também ela, 2002, não foi gerada em universo de dignidade human(izad)a e não nasceu em berço tecido de linhas iguais em riqueza, em trabalho, em solidariedade, em poderes, enfim,  gerada por tear ora bordado a ouro, ora preso por teias de laboriosas aranhas ignoradas, ora sustentado por destroços de mundo retorcido e humilhado à conta de explosões/implosões com cheiro a pólvora e outros materiais mais sofisticados mas não menos arrasadores.
Pede que te contem uma história muito bonita que aconteceu em Portugal num membro da tua árvore genealógica, o 1974. Aprende, quer dizer, conhece, também verdades de Timor, de um outro país muito grande em tamanho que mora entre o Atlântico e o Pacífico e que dizem ser sobrinho de um Sam qualquer... dos meninos e das meninas de África, da Ásia e das outras áfricas, ásias, américas e europas escondidas.
Pára um bocadinho e ajuda-me a contar as vezes que empreguei nomes que seriam precedidos de ?a?. Vamos tentar ainda fazer o exercício de procurar, se existir, uma conjunção de valores ou características associados a cada uma das categorias dos artigos definidos. Vamos contar de conto e não de contas.
Comecei por chamar-te meu querido. É a necessidade e o merecimento que uma mulher te reconhece de seres querido. Aludo ao ventre da tua mãe; foi ela que, embora com influências externas, te acolheu, te educou, te secou a sede e te deu canções de ninar. Para países, fugiu-me o tom para ? o? e ?os? Estados. Ainda são eles quem mais decide sem se aperceberem que elas, as pessoas, são quem manda.
Os oceanos e as áfricas, as ásias, etc. Eles unem e separam; elas sofrem e afirmam-se. Mas, confundem-se e misturam-se em noites de sangue e lágrimas e em volúpia de paixão ardente.
Não há mais lugar para as raparigas  de certa condição, para a vergonha de receber pelo seu trabalho, para o chique da docilidade, para a cobiça de herdeiro rico. O tempo é, imperativamente, de partilha, de amor, de busca de dignidade feliz.  Senão, pobre mundo que imundo passa a ser.

Entendes, 2003, por que ligo o escrito do autor açoriano à nossa carta?
Ridículo? Uma conversa, se merecer a designação, nunca é ridícula!
Mas foi uma carta de amor e, a acreditar no Poeta, felizmente é ridícula!
Aceita o calor de uma mulher em jeito de abraço de esperança.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 119
Ano 12, Janeiro 2003

Autoria:

Iracema Santos Clara
Escola E.B. 2/3 Dr. Pires de Lima, Porto
Iracema Santos Clara
Escola E.B. 2/3 Dr. Pires de Lima, Porto

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