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A mulher figural

Em uma rua perpendicular a rua em que sou vizinho de uma escola municipal, mora uma mulher. Nada de excepcional a não ser o fato de ela morar na calçada. Ela é negra e idosa, nada excepcional na paisagem urbana do Rio de Janeiro. Cenário cada vez mais marcado pela presença «inconveniente» dos moradores de rua, nómades que aparecem e desaparecem  a despeito de qualquer controle ou gosto.

Essa mulher que mora na rua, bem na rua por onde passam diariamente as muitas crianças alunas da escola municipal, tem características notáveis. Está sempre muito arrumada. Cuida para que suas roupas mantenham combinação especial de cores e formas. Muito magra, sua figura, semelhante a certas esculturas africanas, se adequa com exquiza (1) elegância às suas roupas. Na cabeça, tem sempre panos enrolados, exóticos turbantes encimam uma expressão serena e distante. Parece-me, como a maioria das pessoas, mergulhada no seu mundo pessoal, a diferença de sua expressão ter uma certa dose de "estetismo", resultado do distanciamento do olhar, da composição de sua indumentária e também da organização de seus pertences que conserva ora numa calçada, ora em outra, mas, sempre organizados em pilhas simétricas.
Observando alguns estudantes que passavam por ela, ouvi deles pilhérias e considerações desqualificadoras a respeito de sua visualidade. Pensei nas tendências da visualidade da moda, no estetismo contemporâneo que outorga as mais inusitadas manifestações plástico-visuais, e nela, elemento então figural, descubro qualidades e potencialidades estéticas, nessa imagem que não sensibiliza, no sentido que o faz a mim, as crianças da escola.
A elegância impar, a criação e articulação estética de um universo físico aparentemente mínimo talvez nada ensine de imediato a muitos dos que passam. A mim, preocupado apreciador das imagens que o cotidiano oferece, como possivelmente a outros, oferece mais que indícios da permanente exigência estética que conduz o mundo artificial. Mas, em contrapartida, a sua condição de exclusão ameaça ensinar fortemente a naturalização do estado de apartação de um número cada vez maior de pessoas. Personagens sem nome e sem considerações maiores daqueles que por elas passam. São estes mulheres, idosos, negros, pobres, econômica e socialmente desprotegidos e muitas outras categorias e suas múltiplas combinações que os projeta a inconsistente sobrevivência nómade. Exilados nos não lugares  das cidades e dos discursos.
A personagem sobre a qual escrevo, em seu silêncio e desamparo, sugere saberes ilógicos, saberes que nas suas inusitadas combinações exigem a desconstrução das coerências dos discursos estabelecidos sobre a miséria e a exclusão. Em sua inconsistente localização, impõe a percepção da movência dos territórios outorgados, fala, sem verbalizar, da crescente invasão dos bárbaros nómades que, a despeito das muralhas sociais, se impõem, flutuantes nas praças e ruas dos protagonistas do teatro social.
Passam os meninos e meninas, muito próximos dos territórios negados, talvez em direcção a esses próprios territórios, saindo ou entrando na escola. Lugar onde supostamente se preparam para manter ou transformar, o que, por sua vez, também se supõe fronteiras organizáveis.

(1) Deleuse-Gattari, conforme explica Peter Pál Pelbart, têm o "esquizo" como o presente e ausente simultaneamente, aquele que atua e ao mesmo tempo te escapa, sempre dentro e fora, da conversa, da família, da cidade, da economia, da cultura, da linguagem. O esquizo ocupa um território mas ao mesmo tempo o desmancha, dificilmente entra em confronto direto com aquilo que recusa, não aceita a dialética da oposição, que sabe submetida de antemão ao campo do adversário, por isso ele desliza, escorrega, recusa o jogo e subverte-lhe o sentido, corrói o próprio campo e assim resiste às injunções dominantes.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 119
Ano 12, Janeiro 2003

Autoria:

Aldo Victorino Filho
Univ. do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Grupo de Pesquisa "As redes de saberes em educação e comunicação: questão de cidadania"
Aldo Victorino Filho
Univ. do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Grupo de Pesquisa "As redes de saberes em educação e comunicação: questão de cidadania"

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