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Fora de aspas ou entre aspas?

Não sei se se deram conta que de repente todas as palavras começaram a ser metidas entre aspas, não sei se para enfeite do discurso, se para protecção do sujeito e do conceito, se por trejeito mundano de quem as usa.

Não vou dizer que este mundo está maluco, senão catalogam-me logo de cota e já não me ouvem. Sim, eu disse cota, fora de aspas.  É assim uma espécie de vingança por todas as aspas que sou obrigada a engolir e que me arranham os ouvidos como o pau de giz quando descreve no quadro preto a trajectória errada.
Não sei se se deram conta que de repente todas as palavras começaram a ser metidas entre aspas, não sei se para enfeite do discurso, se para protecção do sujeito e do conceito, se por trejeito mundano de quem as usa. Hoje logo pela manhã ouvi na rádio uma pessoa que, segundo dizia, se sentia perseguida entre aspas, o que me fez logo pensar na bondade das aspas, assim como que uma cota de malha a proteger o perseguido. Num intervalo de quinze minutos, mais dois ou três pares de aspas saltaram para o discurso, não me lembro bem, mas pode ter sido o caso de uma dívida entre aspas, e lá dei comigo a perder-me na interpretação do papel das aspas, neste caso, sem dúvida, duas sólidas testemunhas do credor, e até achei prudente passar a emprestar dinheiro entre aspas; no terceiro caso era alguém a tentar descobrir entre aspas não sei o quê, porque a partir desse momento apenas conseguia ver o desespero da pessoa condenada a procurar só em frente, com as aspas a dificultarem-lhe a visão lateral; ou talvez não fosse o sujeito quem carregava as aspas no acto de descobrir, mas antes o objecto alvo da acção que entre as protectoras asas das aspas se escondia.
Enfim,  pelo menos no que me diz respeito, as aspas funcionam como um interruptor eléctrico que com um choque irritativo me põe fora do circuito e me leva onde a imaginação quer, se calhar por via de um mecanismo de compensação. A verdade é que não conheço com rigor o normativo das aspas, mas suponho que se usem, no que aqui nos concerne, para distinguir um estrangeirismo, um neologismo, o calão, para marcar a ironia ou  sugerir que uma palavra habitualmente usada num outro contexto seja entendida mutatis mutandis. Mas para quê no discurso oral, onde elas não têm lugar, se há tanta forma de esclarecer a  eventual, mas certamente intencional, inadequação da palavra? Há até bordões de linguagem que as substituem perfeitamente, tais como ?digamos assim?, ?chamemos-lhe assim?. Estou a dizer isto e a imaginar uma multidão atrás de mim, pressurosa, a pegar-me nos bordões para logo os pendurar entre aspas.
Pois o facto é que as aspas estão a pretender marcar território no discurso oral e é manifesto o seu recurso ao audiovisual nessa campanha. Lembram-se de quantas vezes já viram um cidadão levantar os braços e esticar dois dedinhos de cada mão ? normalmente o médio e o indicador ? e colocar a própria cabecinha entre aspas? Será que já não sabemos falar português e à cautela vamos pondo as palavras que usamos, assim, sob custódia, resguardando-nos de qualquer interpretação que nos seja menos vantajosa? Mas então onde anda a coragem? Onde anda a procura do rigor?
Tudo isto começou por causa da cota, que devia estar entre aspas, visto tratar-se de um texto escrito e a palavra não constar no dicionário com o significado que aqui lhe é dado e que pertence ao sociolecto escolar para designar todo e qualquer indivíduo com mais de 35 anos. Depois, não era disto que eu vinha falar. Mas como já ultrapassei os 3000 caracteres da conta, fica para a próxima. Se a PÁGINA não me mandar meter a viola no saco. Ou entre aspas.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 119
Ano 12, Janeiro 2003

Autoria:

Manuela Coelho
Escola Especializada de Ensino Artístico Soares dos Reis, Porto
Manuela Coelho
Escola Especializada de Ensino Artístico Soares dos Reis, Porto

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