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Ser subtil

A primeira vez que a vi, estava acompanhada por um coronel que se aproximou revirando o bigode com uma mão, ao mesmo tempo que lhe metia a outra na blusa. Sendo eu do tipo confiante e de natureza calma, a atitude do coronel, não me surpreendeu. Supus que ele perdera qualquer coisa e que era, pois, natural querer recuperá-la. A ideia que o seu comportamento pudesse ter significado erótico não me passou pela cabeça até ouvi-lo dizer-lhe:
«Então, bichinha!»
Ah! Pensei, então ela não é tão inacessível quanto eu imaginava. Tive a confirmação da minha descoberta no dia seguinte, ao vê-la a cavalo na companhia de três tenentes. Foi nesse momento que nasceu em mim o desejo audacioso de provar que era homem. Controlei-me durante toda uma semana, à espera de oportunidade conveniente para mostrar toda a minha virilidade. Esse momento não se fez esperar. Superando todas as minhas inibições, baixei-lhe a cabeça ao passar por ela na esplanada e, ainda que aterrado pela minha própria audácia, disse com um sorriso simpático: «Bom-dia.»
Em resposta a esta aproximação resoluta, inclinou levemente a cabeça, levantou as sobrancelhas e continuou o seu caminho.
Fiquei morto de vergonha. Como pude eu comportar-me com tal brutalidade? Idiota. Aprendera a lição. Tive vontade de correr atrás dela e implorar o seu perdão, afirmar-lhe que não for a intenção minha ser indelicado ainda que ela assim me considerasse pela grosseria cometida. Ocorreu-me, porém, que falar com ela então seria ainda dar mais provas da minha insensibilidade.
Na dúvida, conservei-me afastado durante três dias. Eis a razão por que supus que o que ouvira sobre o movimento das tropas estivesse ligado a manobras ou exercícios quejandos. Só saia de noite, caminhando por ruas desertas, envolvido nos meus sonhos e resoluções. Foi por pura coincidência que a vi no parque abrindo caminho por entre uns arbustos. Felizmente, não estava sozinha. De outro modo, ter-me-ia decidido a aproximar-me para a seduzir. A presença de um esquadrão de cavalaria tornou a decisão supérflua.
Os escassos dias de separação tiveram resultados contraproducentes: já não estava certo de quando e onde a poderia encontrar, a não ser nos arbustos. Não sabia em que recepção, caçada ou inauguração estaria ela presente, parecendo-me esta espécie de acontecimento o mais conveniente para as actividades de um sedutor.
O destino salvou-me. Conversava eu com um civil das minhas relações quando ele inesperadamente mencionou o seu nome. Fingindo uma fria indiferença, insinuei com delicadeza interesse pela dama. O meu amigo chegou à janela e assobiou três vezes. «Mantenho-a no pátio para que me não mace», explicou.
Quando ela subiu ao apartamento, o meu amigo procedeu às apresentações. A minha conversa foi brilhante. Inundei-a de epigramas. Entusiasmado pela minha própria eloquência e pelo cair da noite, decidi ir mais longe do que nunca. A minha mão aproximou-se dela a pouco e pouco. Imagine-se a minha alegria quando, ao tocar-lhe, ela não retirou a sua. Inebriado pela minha primeira vitória, falei ainda com mais brilhantismo, enquanto lhe afagava a mão com delicadeza. O meu triunfo seria porventura ainda maior, se aquela mão que encontrara tão perto da sua cintura, e que eu julgara indubitavelmente sua, não viesse a ser do meu amigo.
Passado tempo, já eu não lamentava tanto o sucedido como de princípio. Seis meses após este incidente, encontrei-me sentado a seu lado numa reunião e, quando tomei a sua mão na minha, ela retirou-a delicadamente mas com firmeza, acrescentando com modos amigáveis e severos que não esperava tal procedimento da minha pessoa. Fiquei envergonhadíssimo.
No dia seguinte, levei-lhe flores. Na entrada escura tropecei num bombo daqueles que se vêem nas bandas dos regimentos. Caí e fiz nódoas negras. Ela explicar-me-ia mais tarde que, de qualquer das maneiras, não teria podido ver-me, por estar na cama com uma horrível constipação.
Devia ter sido na segunda Primavera após o nosso primeiro encontro que ela, um dia, ao passar por mim me informou que iria a minha casa, ao escurecer, pedir fósforos emprestados. Tinha-a visto talvez uma dúzia de vezes em caçadas várias, recepções, lançamentos de primeira pedra. Desta vez, estava resolvido a comportar-me com brutalidade cruel.
Quando foi a minha casa, apelou para a minha honra. Depois exprimiu a sua decepção, ao descobrir que eu era como todos os outros homens; tinha-me em alta consideração e odiava que lhe provassem o contrário. Pediu fósforos. Tinha-me esquecido completamente e, para lhos poder emprestar, tive de sair para comprar uma caixa. Ela acenou com a cabeça. Eu, todo emoção, saudei-a. Foi-se embora.
Não devia queixar-me. Constou-me que ela só diz bem de mim. Afirma que sou muito subtil.

O elefante; Mrozeck; livro b; editorial estampa; p. 64.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 119
Ano 12, Janeiro 2003

Autoria:

Mrozeck
Escritor
Mrozeck
Escritor

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