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Postal da cidade do Porto

Caras amigas e amigos

Permitam que vos transcreva para este postal um extracto  do livro «in The Absence of The Scared» que o escritor Jerry Mander  publicou em 1991. Em poucas linhas Mander transmite-nos uma impressão vivida sobre as mudanças materiais que afectam as nossas vidas. Lembrar estas transformações é uma oportunidade para repensarmos os condicionalismos a que estamos sujeitos. Escreve a certo passo o escritor:

«Nasci em 1936. Nessa época, não havia aviões a jacto e o tráfego aéreo comercial praticamente não existia. Não havia computadores, nem satélites espaciais, fornos microondas, máquinas de escrever eléctricas, fotocopiadoras, gravadores. Não havia aparelhagens de som estereo nem compact disks. E, em 1936 não havia televisão. Não se faziam viagens espaciais, não havia bomba atómica, nem bomba de hidrogénio, nem «mísseis teleguiados», como se chamavam a princípio, nem bombas «inteligentes». Não havia luzes fluorescentes, nem máquinas  de lavar e de secar roupa, nem artes culinárias, nem câmaras de vídeo. Não havia ar condicionado. Nem sequer havia auto-estradas, centros comerciais ou hipermercados. Não havia subúrbios como hoje existem. Não havia serviço  Express Mail, nem fax, telefone digital, nem pílula contraceptiva. Não havia cartões de crédito, nem fibras sintéticas. Não havia antibióticos, órgãos artificiais, nem pesticidas nem herbicidas? Durante a minha vida tudo isto mudou (?)».
Os inventos que Mander enumera  são concretos, mas não esgotam  a panóplia de objectos que entretanto surgiram e que mudaram a nossa vida. Durante o século passado o ritmo da mudança não parou de acelerar, fazendo caducar muitos dos nossos saberes e conhecimentos e disparar o nosso ritmo de vida.
A este registo de inventos materiais seria de juntar uma outra listagem do que não havia e do que deixou de haver em matéria de pensamento filosófico, histórico, político, ideológico e de outras áreas do saber. Deixo aqui um convite para que alguém escreva um postal sobre essas matérias que contribuíram decisivamente para alterar a nossa forma de pensar e de agir.
Lembro-vos que muitos dos aparatos que foram surgindo  não são inventos mecânicos, mas electrónicos.  Trabalham instantaneamente e normalmente vinte e quatro horas por dia. Tudo tão rápido e tão intenso que a nossa vida se transformou numa vertigem. Não há tempo para parar, pensar, julgar. Não há tempo para avaliar, criticar e decidir. Não há tempo para imaginar, sorrir ou sonhar. Não há tempo para viver.
Nos anos setenta e oitenta do século XX até a ideia de rápido assumiu novas designações passando a dizer-se urgente e logo a seguir expresso. O correio passou num instante de normal a azul e deste, através do correio electrónico, a instantâneo.  Tudo nos convida a correr à desfilada como animais numa manada em pânico. Como na manada aturdida, não são os animais em pânico mas o guia quem decide os caminhos que se vão percorrer. Não importa que se corra para o abismo. Corre-se por instinto de sobrevivência de forma desesperada e cega, até à exaustão.
Os apelos e incitamentos que nos chegam , frutos da ideologia dominante, vão no sentido de aceitarmos pacificamente este aumento de velocidade.  Em nome da competitividade, nivela-se pela barbárie, reduz-se o homem à categoria de animal-objecto e nega-se-lhe o direito a ritmos adequados à vida. A velocidade a que seguimos priva-nos da visão necessária à escolha dos melhores caminhos.  E nós temos não só o direito, mas também o dever, de escolhermos o caminho que queremos percorrer.
Dirijo-vos este postal de apelo. Um convite para que juntos, neste fim de ano, possamos parar um pouco e parando recuperar o olhar crítico sobre o mundo em que vivemos. O mundo da produção, da informação que nos esmaga e do consumo.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 118
Ano 11, Dezembro 2002

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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