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A criança dita incapacitada - Ensaio de etnopsicologia da infância

Para minha amiga
Ana Paula Vieira da Silva, que inspirou a ideia deste texto.

Estamos habituados a definir os limites da infância. Habituados a comandar os seus afazeres, bem como a desenhar os seus dias, hora após hora. Mandamos nelas. Dispomos delas. Pensamos por elas. Dizemos em vez delas. Pensamos que as conhecemos e até, sem as conhecer, as definimos. Eu, nos meus textos, Freud, na sua teoria. Os pedo-analistas e pedo-psicólogos, nas suas teorias que, como diz Alice Miller, no seu texto de 1988: Das verbannte Wise , traduzido pela Tusquets de Barcelona como El saber proscrito, refugiam-se nas teorias com o intuito de não se confrontarem a si próprios ao analisar uma criança, ou não encontrar, nelas, rastos das crianças que foram. A própria Alice Miller afirma, no mesmo texto, Capítulo 3 da III Parte, que a criança impõe limites. Donde, a criança define. Leitor, preste bem atenção, esta é a realidade.
Miller conta, a propósito, uma história que penso que o leitor devia ler, para melhor entender essa  nossa batalha pelo saber da epistemologia da criança. Epistemologia ainda não conhecida, que arrisca um processo emotivo mal entendido e um educativo ainda pior. Para estarmos certos do que o adulto pensa da criança, bastará ler o artigo 65º do Código Civil Português,  versão de 2001, no seu n.º 1: ?A personalidade ou capacidade jurídica é a susceptibilidade de se ser sujeito de direitos e obrigações, isto é, de realizar actos jurídicos?. E acrescenta no Artigo 123º: ?Salvo disposição em contrário, os menores [de 18 anos] carecem de capacidade para o exercício de direitos.? E, antes, no Artigo 14º, estabelece que a incapacidade dos menores é suprida pelo poder paternal ou do tutor.
Por outras palavras, a criança não é pessoa, não tem capacidade, por parecer não entender o valor dos bens, nem como celebrar contratos. Ideia do campo jurídico, retirada da experiência: a infância parece não saber gerir um património. Mas, esta incapacidade, jurídica, estende-se ao quotidiano e ao campo das emoções da criança.
Ou, por extensão e também por outras palavras, a população inteira de uma Nação pode ser considerada incapacitada, por não saber o que é o PIB, ou a fórmula do Multiplicador de Investimentos do britânico Lord John Maynard Keynes, as bases de produtividade de uma empresa, os motivos de despedimento do trabalho ou a estrutura do processo de produção de uma lei, ?Lei-Decreto?, decreto-lei, lei, decreto, lucro, mais valia, ou outros conceitos relacionados com a reprodução da vida.
De duas uma: ou a maior parte de uma Nação é incapacitada, ou a criança é tão adulta quanto o resto dos seus concidadãos. Ou de duas três, quem especula com o multiplicador de investimento tem capacidade e é pessoa, sendo o resto apenas sujeito, do qual se retira valor a mais para o lucro do conhecedor da produção do PIB, da lei feita para ele e das definições criadas para manter a população com capacidade de produzir, e não de investir. Sujeito que inclui adultos e crianças ? que nada disto sabem, nem imaginam. A infância ? esse, antigamente, largo segmento da população, parece hoje reduzido a um envelhecido segmento ?adulto?, por causa do lucro dos investidores. Não é esta a igualdade à qual a criança aspira, dentro dos seus conceitos, definidos nas suas emoções e nas palavras usadas para exprimir uma realidade.
Pensava, enquanto falava com uma especialista no tema, em Portugal, Ana Maria Bénard da Costa, que era atribuída incapacidade às pessoas nascidas com o denominador de Inteligência muito baixo, ou com acidentes biológicos ou genéticos, ou cegos, ou mudos ou surdos. Estas crianças despertam comiseração entre adultos. E no entanto, por força do já referido, toda a criança é afinal incapacitada. Ou porque não pode ler, ou porque, ainda que tendo lido, não entende; ou porque não pode ouvir, ou, ainda que ouvindo, não percebe. A lei não distingue as heterogéneas incapacidades da infância, bem como não entende a semelhante incapacidade do adulto. As crianças com posses, sabem gerir, por imitarem os seus adultos, produtores de leis e conhecedores do multiplicador de investimentos; as crianças sem posses, não têm de onde ou como, imitar esse agir, qualificado pela lei como capacidade. As(os) Educadores de Infância sabem, muito bem, os limites dos mais novos. Esses limites, navegam pela via das emoções ou, por essa outra, mais difícil de ultrapassar, a de ter meios para gerir e saber lidar com recursos. Porque, leitor, na minha longa prática de tentar entender o pensamento dos mais novos, observei, neles, a capacidade para bem entender a correlação meios-lucros. Uma correlação que o adulto esquece, no seu hábito de poupar para continuar, sem fome, dentro da História; para não ser um excluído social, cujo rendimento lhe é retirado pela globalização. Conceito a que a criança não tem acesso, pela falta de entendimento do conceito no seio da família, à qual, por sua vez, até hoje, ninguém o explicou. Maastricht é um dos mistérios usados pelas bancadas dos partidos, para lutar em nome do povo e para o povo, mas nunca pelo povo. Discurso que não inclui crianças, apenas salário e operariado. O programa de capacitação da infância dita deficiente, deve ser mais abrangente que o definido por Ana Maria Bénard e pela sua equipa. Em Portugal, teve como recompensa o fecho do seu Instituto de Inovação Educativa. Inovação que contempla a capacitação em economia de toda a população, ou deveria, como tenho defendido, desde que me lembro de escrever e falar sobre a infância. Esse grupo social, que é pessoa e tem capacidade, deve ser ensinado, desde muito novo, a calcular e optimizar recursos. De alguma forma, e sem palavras, já o fazem pela sua escassez. Os Direitos das Crianças, definidos pelas periclitantes Nações Unidas, que aceitam uma invasão à antiga Mesopotâmia, da qual nasceu todo o nosso saber, esses Direitos, não são nem reconhecidos, nem ensinados. Donde, toda criança é incapaz, mongólica, autista, sem inteligência nem futuro. Os sabedores da lei é que mandam e definem, em Códigos que, se desobedecidos, causam punição.
A hora deveria chegar para um Natal Feliz, com os Direitos das Crianças usados para as capacitar para a vida de hoje. Como sempre devia ter acontecido. Como sempre seria, se lutássemos para aprenderem o Multiplicador de Investimentos, a Teoria dos Chicago Boys e a expandirem a  Soberania de Portugal, dentro da sua Democracia.
Natal e Ano Novo de Democracia para a Infância e o adulto seu semelhante.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 118
Ano 11, Dezembro 2002

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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