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Da hegemonia à dominação: a direita em crise

O filósofo marxista italiano Antonio Gramsci utilizou o conceito de hegemonia para se referir ao modo como o poder dominante consegue ganhar o consentimento das classes subalternas.

A hegemonia distingue-se da ideologia pelo facto de esta última poder ser imposta através da força. Diferentemente da ideologia, a hegemonia é capaz de saturar as consciências dos cidadãos que constróem as suas leituras da realidade a partir de um universo único de significados possíveis. No processo de hegemonia confluem os intelectuais orgânicos encarregados de produzir e de reproduzir a ideologia dominante, intelectuais recrutados nos grupos políticos no poder e entre as classes subalternas. A hegemonia, por consequência, incorpora uma lógica de adesão quase incondicional, e é capaz de silenciar as escassas vozes discordantes do discurso dominante sem necessidade de recorrer à coacção, à censura ou ao aniquilamento. A hegemonia, distingue-se assim das formas de dominação mais tradicionais, em que a autoridade é mantida através do autoritarismo e fazendo uso de diversas formas de violência, física e/ou simbólica.
A direita política na Europa, e especialmente em Espanha, parece ter vivido um final de século instalada num poder quase hegemónico. A aceitação política e social do neoliberalismo como ideologia dominante e como o momento de expansão do ciclo económico facilitaram o surgimento do denominado pensamento único (expressão que evidencia claramente a existência de hegemonia) e a adesão de amplos sectores das classes médias ao fundamentalismo do mercado. O êxito da hegemonia neoliberal evidencia-se menos nos resultados duma determinada política económica (nefastos em alguns casos) do que na sua capacidade para convencer uma boa parte da sociedade das virtudes dessa doutrina. Os recursos discursivos têm sido (e continuam a ser) múltiplos: insustentabilidade do Estado de Bem-estar, ineficiência do sector público, qualidade associada à competitividade e/ou necessidade de contenção salarial.
Hoje, contudo, o final da etapa de expansão do ciclo económico, os primeiros sintomas de pouca saúde das economias nacionais e, sobretudo, a fractura social que produzem algumas políticas geradoras de maiores desigualdades, parecem começar a pôr em causa a exclusividade de uma forma de pensamento e de uma forma de fazer política. A existência de uma certa ?crise de hegemonia? torna-se visível não tanto através do número de vozes em desacordo com o pensamento único, mas sobretudo através do estilo político que a direita assume quando tem de reagir perante estados de emergência da mais diversa natureza. É então que surge a face da direita de sempre, daquela direita que historicamente se caracterizou por fazer uso mais da dominação do que da hegemonia, através do autoritarismo e não da autoridade legítima, através da coacção e não da persuasão. Uma direita política instalada no poder por uma espécie de ?direito natural? derivado do próprio poder económico dos sectores sociais que representa.
Os sintomas do retorno à dominação são diversos e evidenciam as insuficiências da direita para gerir crises políticas em contextos democráticos. Alguns destes sintomas reflectem-se na aceleração das reformas e na incapacidade de avaliar os custos políticos de determinadas decisões. À guisa de exemplo, o Partido Popular em Espanha aproveitou a maioria absoluta da presente legislatura para impor reformas educativas em todos os níveis do ensino oficial: no ensino primário e secundário, na formação profissional e na Universidade. Em apenas dois anos implementaram-se reformas controversas num terreno que requer pactos de regime e um mínimo de consenso social. A pressa em aproveitar a vantagem política de que desfrutava acelerou transformações profundas e traumáticas cujo impacto perdurará no tempo. A esta direita parece pouco importar que a sociedade esteja clamando pela revogação destas leis e pela necessidade de dialogar no sentido de dar espaço a todos os sectores afectados.
Outro sintoma é aquele constituído pela facilidade com que a direita se aproveita daquilo que é do público, especialmente em períodos de crise. Numa clara confusão entre governo e Estado, a direita gere as conjunturas desfavoráveis através da apropriação indevida de espaços públicos que devem ser independentes por uma simples questão de higiene democrática. Deste modo, nomeiam-se representantes ?a dedo? para o aparelho judicial em clara sintonia com os interesses do governo, modificam-se leis ou instituições cuja estabilidade é necessária do ponto de vista do interesse público, não devendo em caso algum depender dos interesses políticos (como as leis eleitorais), ou faz-se um claro uso ideológico dos instrumentos de produção intelectual financiados com fundos públicos (como as publicações financiadas pelos ministérios), chegando-se, em dada ocasiões, a vetar ou censurar opiniões que são desfavoráveis, por mais que estas estejam cientificamente sustentadas.
O retorno da dominação é sem dúvida o sintoma mais claro de uma direita em crise, incapaz de continuar a produzir discursos hegemónicos que gerem adesão espontânea. A resistência em abandonar o ?poder natural? faz aflorar as piores formas duma direita que, apesar de tudo, não assume a verdadeira democracia.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 118
Ano 11, Dezembro 2002

Autoria:

Xavier Bonal
Universidade Autónoma de Barcelona
Xavier Bonal
Universidade Autónoma de Barcelona

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