Lisboa, 5 de Outubro de 1966.
Meu caro Amigo,
Muito lhe agradeço a sua carta. Não duvido de que
a sua opinião sobre o meu livro1 seja totalmente sincera nos
aplausos, mas por certo o meu trabalho não está livre de imperfeições, e a sua
amizade não as aflorou sequer... Porque a verdade é que ando francamente perplexo:
nas opiniões que me chegaram não houve, até agora, um "se" ou um "mas"
- e isto de pessoas de vários quadrantes ideológicos, diametralmente opostos
até...2 Desconfio da fartura. Quando um livro agrada a gregos
e troianos, sobretudo na nossa terra, parece-me que o Cavalo já está na praça
- e o autor vai pagá-las caras... Mas pode também acontecer, afinal, que os
leitores sejam sensíveis à total sinceridade com que os meus poemas foram escritos,
e o seu acordo resulte de um entendimento com o poeta num plano de humanidade
estreme. Se assim é, não quero outro louvor.
Duas rectificações, agora. A primeira parte do livro chama-se "Até ao
Sabugo" e não "Os Poemas Possíveis", que é o título geral. Isto
é uma observação de somenos. A segunda, mais importante, tem que ver com o problema
das influências. Aceito o Torga, o Gedeão e o Régio (faltou-lhe mencionar o
Sena), mas não posso aceitar a do Reinaldo Ferreira, porque só fiquei a conhecer
a obra dele agora, com a publicação dos poemas completos pela Portugália. Não
me lembro mesmo de antes ter lido, com olhos de ler, qualquer poesia dele.
Portanto, se o Reinaldo Ferreira está nos meus versos, e eu não digo
que não esteja, é porque ele e eu somos parentes espirituais...
Falei acima de sinceridade. Foi com essa mesma sinceridade que respondi
às suas perguntas para a entrevista no "Jornal de Notícias".3
Não quis fazer declarações para a galeria. Se a entrevista se publica, é porque
se entende que o leitor quererá saber alguma coisa do poeta. Foi
sempre isto que eu tive em mente.
Acho que o questionário não tem de sofrer alterações, salvo na primeira pergunta,
que deverá limitar-se a ser: "Que pensa da actual poesia portuguesa?"
- com exclusão de todo o resto. Está de acordo?
Quanto à fotografia, prefiro não a mandar. Não é porque me repugne ver-me retratado,
mas porque acho que entrevista e fotografia é de mais. Sentir-me-ia presidente
de câmara municipal... Mandar-lhe-ei uma mais tarde, que utilizará como quiser
e se quiser, mas não na entrevista. O.K.?
Estou-lhe muito grato por todas as suas atenções. E não quereria que a nossa
correspondência ficasse por aqui.
Disponha sempre do amigo e camarada que o abraça
José Saramago.
1. Alusão a Os Poemas Possíveis, que acabava
de ser publicado e ao meu ?Recado para um Poeta? (de que lhe enviei cópia) foi
publicado no Jornal do Fundão, 16 de Outubro. 1966.
2. Reacções críticas sobre esse seu livro, que se não foi de todo aplaudido,
também não teve críticas muito negativas.
3. Entrevista publicada no Suplemento Literário do Jornal de Notícias (10
de Novembro.1966), que saiu mesmo sem a fotografia do Poeta.
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