No desejo de nos associarmos à celebração dos 80 anos de
vida de José Saramago (Prémio Nobel de Literatura), relembramos aqui o ?Recado
para um Poeta? publicado então no Jornal de Fundão, ainda em memória
de António Paulouro, um homem íntegro e generoso que durante quase sessenta
anos não deixou de defender os interesses das gentes da Beira Interior. Foi
essa a forma pessoal e crítica de saudar o livro Os Poemas Possíveis,
saído em 1966 na Colecção ?Poetas de Hoje? da Portugália Editora, que assinalou
o regresso à literatura do autor de Memorial do Convento. Mas aqui revelamos
também uma carta inédita de Saramago a propósito desse texto e da entrevista
saída no Jornal de Notícias pelo interesse biográfico e literário de
que se reveste.
Recado para um poeta
O poeta nunca tem idade para se revelar publicamente aos olhos
dos outros. O poeta aparece quando pode ou quando deve. O poeta, qualquer
poeta, é sempre aquele homem que deseja comunicar aos outros homens o mundo
da sua prória experiência. José Saramago surge pela primeira vez como poeta
num livro que acaba de ser publicado - Os Poemas Possíveis. E nada mais
justo, mais oportuno, do que enviar-lhe daqui, aos pés da serra da Estrela de
outras memórias, numa cidade que pouco convida à meditação, cinzenta e fria,
gelada e íngreme, um recado amigo para o poeta que existe verdadeiramente em
José Saramago.Em traços gerais, dizemos que há nos seus poemas, sobretudo na
parte designada ?Até ao sabugo?, uma predominância insistente e intencional
no querer descobrir os horizontes, a razão de ser das coisas - tudo isso a reflectir
um tempo memorial e sensitivo em que o poeta apreende o mundo mais pelos
seus ?sinais? obscuros do que pela nitidez dos contornos desenhados nos seus
versos; e, por outro lado, há uma condenação do estar-se no mundo e ter-se
dele a consciência dos seus limites:
Poeta não é gente, é bicho raro,
Que de jaula ou gaiola, se escapou.
E anda pelo mundo às cabriolas,
Aprendidas no circo que inventou.
Estende no chão a capa que o disfarla,
Faz do peito tambor, e rufa, salta,
É urso bailarino, mono sábio,
Ave de bico torto e pernalta.
Podemos afirmar que José Saramago é um poeta de raiz ?neo-parnasiana?,
o que, ao contrário do que se poderá julgar, faz o poeta captar da experiência
quotidiana o sentido enaltecedor das suas aspirações trágicas e heróicas, cantando
as misérias e grandezas da existência humana. Mas José Saramago deixa também
antever, na harmonia da sua arte poética, um sentido profundo da vida e dos
problemas dos homens que se reflectem na sua pessoal presciência das coisas
vivas e mortas. Há ainda nos poemas de Saramago,quanto a nós, um conhecimento
da dor sentida, desesperada, frustrada em muitos dos seus aspectos, mas
que procura ainda gritar, mesmo à boca fechada, os ?poemas possíveis?
da sua condição de poeta intuitivo, emocional, apaziguador da alegria e da tristeza
num contraponto bem encontrado na marcação rítmica e musical dos seus poemas:
Aqui direi que busco a só maneira
De todo me encontrar numa certeza,
Leve nisso ou não leve a vida inteira.
?Alma aberta aos quatro ventos?, a poesia de José Saramago
é, na verdade, fruto de consciente e lúcida maturidade, mesmo que nos seus poemas
se adivinhe a sombra ténue de Torga, Régio, Gedeão ou Reinaldo Ferreira. Mas
apetece dizer ao autor de Os Poemas Possíveis, neste breve recado de
saudação, que valeu a pena esperar alguns anos para o vermos revelar-se publicamente
poeta. Nós, que tivemos a oportunidade de ler os seus versos, sentimos uma agradável
surpresa por encontrarmos neles um nível poético e uma excepcional qualidade
formal poucas vezes conseguida em livros de poetas portugueses.
Sim, o poeta não tem (não deve ter) idade para aparecer e mostrar aos outros
os seus poemas, os ecos íntimos da sua própria linguagem. O poeta deve estar
vivo e cantar sempre com a voz que tem - a voz pessoal e intransmissível da
sua condição de ser poeta.
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