Recentemente, o programa Acontece da Televisão Pública permitiu-se,
com justificada prudência e subtileza, fender a sua "grelha" habitual,
dedicada às artes e letras, promovendo um pedagógico debate sobre touradas,
entre um conhecido e denodado defensor dos direitos dos animais (designação
consagrada pela UNESCO) e um aficionado e "pobre homem" que não
era da Póvoa de Varzim.
Quase nos tínhamos esquecido da "fraqueza" do Presidente da nossa
República, quando, em Barrancos (como em Roma se deve ser romano), condescendeu
com o "direito democrático" de os barranquenhos "cumprirem a
tradição" de matar os touros na arena, dando assim o mote ao Parlamento
para revogar, a título de excepção, a lei vigente de 1928 (salazarista, imagine-se!)
que proibia a crueldade - para salvaguardar o prestígio de um Estado que, por
laxismo, se eximia ao dever de a fazer cumprir. O mesmo Estado que mandaria
disparar canhões de água e bastonadas, se fosse preciso, para desmobilizar manifestantes
exaltados.
Em vão, o protector dos animais em geral (bichos e homens) argumentou anatematizando
o jogo arcaico e sádico da crueldade gratuita, incompatível com as Luzes da
civilização, contra um opositor que o defendia como um "espectáculo grato
às multidões" e que Portugal até "exportava" como um valor da
sua "cultura". Em vão o primeiro rebateu a alegação fixando que um
inquérito realizado demonstrou que mais de 70% dos portugueses reprovavam as
touradas e mais de 80%, as que incluíam a morte dos touros. Insensível à argumentação,
trasbordante de um lusocontentismo que vitoriava a "cultura" de Portugal,
incluído entre a meia dúzia de países, no mundo inteiro, onde a prática sobrevivia,
só lhe faltou repetir as palavras escritas, na oportunidade, por um sociólogo
nas páginas do PÚBLICO: "As festas de Barrancos não ofendem qualquer direito
das pessoas. Não há aqui mais violência, doméstica ou pública, do que nas cidades
onde vivem os que criticam. Não há crianças maltratadas, nem trabalho infantil.
Não há perseguição nem discriminação étnica ou racial."
De facto, sacrificar um touro por um mero jogo de sangue e de morte (ou outros
jogos como os das lutas de galos ou de cães) não é comparável ao jogo dos Romanos
que há dois mil anos se divertiam mortificando animais e cristãos nos Coliseus...
É "apenas" um jogo de violência gratuita, em que um psicólogo provavelmente
encontrará ausência de algumas "introjecções" civilizacionais e um
etnógrafo descobrirá a permanência de algumas "pulsões" primitivas
que ainda se podem identificar em pequenas "áreas culturais", como
entre os índios do Peru: aqui realizam-se touradas (introduzidas pelo colonizador
espanhol) para ver o touro (que simboliza o conquistador) desfalecer sob as
garras do condor (que simboliza o povo subjugado) amarrado ao dorso da vítima.
Mas este povo já não aceita, quando falta o condor, substituir o algoz convertido
em instrumento de desagravo histórico e, menos ainda, manchar as mãos com
o sangue do inocente animal sacrificado.
Provavelmente, também esta repugnância será ainda resquício da piedosa "tradição"
introjectada pelos primeiros missionários que lhe falaram do Deus da Bíblia,
segundo a qual, o Senhor, ao conceder ao homem o direito de se alimentar com
"tudo o que se move e tem vida", proibia-o de "comer a carne
com a sua alma, o sangue", e até pediria contas do sangue vertido a todos
os animais, "por causa das vossas almas". Quereria dizer: "Contei-vos,
homens, senão sereis julgados como o único animal que mata por prazer!"
Moral cínica da história: ainda existem, neste mundo de diversos patamares
civilizacionais, "nichos" ou "reservas" culturais onde
até para ser touro, cão ou galo é preciso ter sorte...
|