Página  >  Edições  >  N.º 117  >  Cultura taurina

Cultura taurina
Recentemente, o programa Acontece da Televisão Pública permitiu-se, com justificada prudência e subtileza, fender a  sua "grelha" habitual, dedicada às artes e letras, promovendo  um pedagógico debate sobre touradas, entre um conhecido e denodado  defensor dos direitos dos animais (designação consagrada pela  UNESCO)  e um aficionado e "pobre homem" que não era da Póvoa de Varzim.
Quase nos tínhamos esquecido da "fraqueza" do Presidente da nossa República, quando, em Barrancos (como em Roma se deve ser romano), condescendeu com o "direito democrático" de os barranquenhos "cumprirem a tradição" de matar os touros na arena, dando assim o mote ao Parlamento para revogar, a título de excepção, a lei vigente de 1928 (salazarista, imagine-se!) que proibia a crueldade - para salvaguardar o prestígio  de um Estado que, por laxismo, se eximia ao dever de a fazer cumprir. O mesmo Estado que mandaria disparar canhões de água e bastonadas, se fosse preciso, para desmobilizar manifestantes exaltados.
Em vão, o protector dos animais em geral (bichos e homens) argumentou anatematizando o jogo arcaico e sádico da  crueldade gratuita, incompatível com as Luzes da civilização, contra um opositor que o defendia como um "espectáculo grato às multidões" e que Portugal até "exportava" como um valor da sua "cultura". Em vão o primeiro rebateu a alegação fixando que um inquérito realizado demonstrou que mais de 70% dos portugueses reprovavam as touradas e mais de 80%, as que incluíam a morte dos touros. Insensível à argumentação, trasbordante de um  lusocontentismo que vitoriava a "cultura" de Portugal, incluído entre a meia dúzia de países, no mundo inteiro, onde a prática sobrevivia, só lhe faltou repetir as palavras escritas, na oportunidade,  por um sociólogo nas páginas do PÚBLICO: "As festas de Barrancos não ofendem qualquer direito das pessoas. Não há aqui mais violência, doméstica ou pública,  do que nas cidades onde vivem os que criticam. Não há crianças maltratadas, nem trabalho infantil. Não há perseguição nem discriminação étnica ou racial."
De facto, sacrificar um touro por um mero jogo de sangue e de morte (ou outros jogos como os  das lutas de galos ou de cães) não é comparável ao jogo dos Romanos que há dois mil anos se divertiam mortificando animais e cristãos nos Coliseus... É "apenas" um jogo de violência gratuita, em que um psicólogo provavelmente encontrará ausência de algumas "introjecções" civilizacionais e um etnógrafo descobrirá a permanência de algumas "pulsões" primitivas que ainda se podem identificar em pequenas "áreas culturais", como entre os índios do Peru: aqui  realizam-se touradas (introduzidas pelo colonizador espanhol) para ver o touro (que simboliza o conquistador) desfalecer sob as garras do condor (que simboliza o povo subjugado) amarrado   ao dorso da vítima. Mas este povo já não aceita, quando falta o condor,  substituir o algoz convertido em instrumento de desagravo histórico e,  menos ainda,  manchar as  mãos com o sangue do inocente animal sacrificado.  
Provavelmente, também esta repugnância será ainda resquício da piedosa "tradição" introjectada pelos primeiros missionários que lhe falaram do Deus da Bíblia, segundo a qual, o Senhor,   ao conceder ao homem o direito de se alimentar com "tudo o que se move e tem vida", proibia-o de "comer a carne com a sua alma, o sangue", e até pediria contas do sangue vertido a todos os animais, "por causa das vossas almas". Quereria dizer: "Contei-vos, homens, senão sereis julgados como o único animal que mata por prazer!"
Moral cínica da  história: ainda existem, neste mundo de diversos patamares civilizacionais,  "nichos" ou "reservas" culturais onde até para ser touro, cão ou galo é preciso ter sorte...

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 117
Ano 11, Novembro 2002

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo