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Criança tem voz própria

(pelo menos para a Sociologia da Infância)

ideia chave que ressalta da entrevista à professora Manuela Ferreira da FPCE da Universidade do Porto

Professora auxiliar da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação na Universidade do Porto, Manuela Ferreira inicia o seu percurso profissional como educadora de infância, trabalhando em jardins da rede pública.  Posteriormente licencia-se em Ciências da Educação na FPCE-UP, onde, desde então, tem leccionado as disciplinas de Ciências Sociais e Sociologia da Educação. Tem desenvolvido investigação na área da Sociologia da Infância - tema da entrevista que se segue - e dos Estudos de Género.


A Sociologia da Infância é uma área das ciências sociais com uma implantação relativamente recente no universo académico. Em que contexto surge?
 
A preocupação em estudar a criança do ponto de vista da Sociologia não é propriamente recente, basta pensar no conceito de socialização. O que é novo, é uma inversão do olhar que, ao assumir a autonomia conceptual das crianças e da infância, advoga que as suas culturas e relações sociais são dignas de serem estudadas em si mesmas, no presente e não no seu futuro como adultas, a partir da sua própria voz e não apenas através daquilo que os adultos dizem delas.
Trata-se de colocar as crianças em equidade conceptual relativamente a outros grupos ou categorias sociais, uma vez que se considera que elas são seres activos na construção e determinação das suas vidas e dos que as rodeiam, adultos e outras crianças.
Ora, é fundamentalmente a partir dos anos oitenta, que ganha visibilidade no mundo anglo-saxónico um conjunto de estudos de diversas áreas, desde a História Social, à Antropologia, Economia e Sociologia, que têm em comum a criança como unidade de observação. Claro que esta deslocação do foco para a acção da criança e a sua consideração como actor social não pode ser compreendida se não se entrar em linha de conta com as transformações que ocorreram dentro do próprio campo sociológico, nomeadamente dos debates entre as perspectivas mais estruturalistas e as que põem a tónica na acção social.
 
De que forma caracterizaria o campo de acção da Sociologia da Infância?
 
Como já referi, a Sociologia da Infância procura tomar as crianças como o seu centro de interesse, a partir de si próprias e não da sua dedução dos quadros instituídos de que estão dependentes. Essa preocupação tem-se traduzido em modos diferentes de construir sociologicamente a infância, tanto do ponto de vista teórico como metodológico. Há perspectivas que têm tido como preocupação mostrar que a infância não é uma realidade finita com uma forma única mas antes uma pluralidade de concepções que co-existem e são produto de uma construção social e histórica.
Outras, procuram mostrar que mesmo que a infância varie historicamente e os seus membros mudem continuamente, a infância é uma categoria estrutural distinta e permanente das sociedades humanas. Aqui, a tónica é sobretudo colocada nas características sociais mais uniformes que permitem defini-la como grupo social constitutivo da sociedade, à semelhança de outras categorias estruturais como o género ou a classe social.
Outras ainda, procuram enfatizar as crianças como actores sociais competentes, ou seja; com poder de acção e tomada de iniciativa, valorizando a sua capacidade de produção simbólica e a constituição das suas práticas, representações, crenças e valores em sistemas organizados social e culturalmente.
 
Ou seja, as crianças serem reconhecidas como uma estrutura e um grupo social próprio...
 
Exactamente. Não pode haver sociedades sem infância, por isso ela é uma categoria estrutural permanente. Para pensar a infância como categoria estrutural distinta de outras categorias como a classe social, o género ou etnia, a idade torna-se uma variável importante porque singulariza as crianças de acordo com as suas características mais comuns, sejam elas físicas, psicológicas, morais, afectivas, sociais. Isso permite uma maior compreensão da sua situação estrutural por referência ao adultos de quem estão ou são vistas como dependentes e perante quem têm menos poder e uma maior evidência de que também elas estão sujeitas às mesmas possibilidades e constrangimentos que são colocados pelos sistemas e estruturas sociais, geracionais e genderizados.
Neste sentido, as crianças são vistas como uma categoria universal, um grupo social, que emerge dos constrangimentos que as estruturas sociais, económicas e determinadas políticas lhes colocam e que sistematicamente as excluem daquelas esferas sociais. De outro ângulo, uma vez que é nas instituições e nas acções sociais que aí desenvolvem que a infância é socialmente construída tanto pelas próprias crianças como pelos adultos, também se pode compreender melhor como é que no quotidiano, quando ali se encontram, jogam e negoceiam as suas diferentes e desiguais posições sociais de classe social, idade, género, estatuto, poder, elas se constituem como grupo social.
 
Refere, em texto recente, que a Sociologia da Infância, abordando a criança como uma construção social, "procura suspender significados tidos como certos, evidentes e inquestionáveis". A que significados se refere?
 
Refiro-me fundamentalmente às concepções tradicionais dominantes acerca das crianças e da infância que as definem como um ser irresponsável, imaturo, incompetente, irracional, amoral, a-social, a-cultural, seres em défice, simples objectos passivos e meros receptáculos de uma acção de socialização.
Refiro-me também à própria concepção de socialização como um processo singular, progressivo, concertado, unívoco e vertical, reduzido às relações com os adultos que o encimam, localizado numa instituição com objectivos claramente definidos e em prol da reprodução social.
Refiro-me à concepção do brincar como uma acção meramente natural e espontânea das crianças, uma espécie de credo e emblema único das actividades da infância que esgota a multiplicidade das suas acções e torna opacos os modos como criam realidade social.
Refiro-me à concepção de grupo de pares como forma relação e de organização assente na homogeneidade e de onde estão ausentes relações sociais desiguais e a presença de relações estratégicas, de poder e contra-poder.


Contributos para uma cidadania da infância


Que contributos pode trazer a Sociologia da Infância para a redefinição, entre outras, da prática pedagógica dos educadores?
 
Quando uma das principais preocupações da sociologia da infância é, por um lado, mostrar que o modo como nós, adultos, vemos e pensamos as crianças interfere no modo como nos relacionamos com elas e, por outro, que as crianças são actores sociais dotados de pensamento reflexivo e crítico, daí que a relevância que se pretende atribuir às suas acções como prova de si e do que são como seres inteligentes, socialmente competentes e com capacidades de realização, dotados de emoções e sentimentos à luz das suas próprias evidências, parece-me que estão dadas as grandes coordenadas.
A concretização desta segunda coordenada requer do adulto-educador uma outra atenção além da observação que se preocupe com a escuta das crianças, por forma a tornar-se um intérprete e tradutor competente das crianças, a partir dos pontos de vista delas e dos vários sentidos que estão envolvidos na situação, e isso não é possível sem estar disposto a deixar-se surpreender pelas crianças e a seguir atrás delas para aceder aos seus mundos.
Sem esta aceitação de uma inversão das suas posições e papéis tradicionais, o que implica uma reflexão acerca das desiguais relações de poder entre adultos e crianças, não é possível promover a participação das crianças na tomada de decisão e gestão das suas actividades e, muito menos, no planeamento do quotidiano do jardim de infância.
 
Ou seja, levar a sério o actor social que ela de facto representa e reconhecer o seu direito à palavra...
 
Sim. Só que não basta reconhecer o direito à palavra das crianças. É preciso ter consciência de que essa palavra é dominada, dita e manipulada diversa e desigualmente pelas diferentes crianças. Se pensarmos, por exemplo, que os momentos de reunião colectiva no jardim de infãncia são um encontro público em que as crianças têm oportunidade de exprimir as suas opiniões, interesses, conhecimentos, etc, e que o seu modo privilegiado é a palavra oral, não é difícil imaginar do ponto de vista sócio-cultural quem serão as crianças que, muito provavelmente e em grande parte do tempo, ocuparão e dominarão esse espaço!
O mesmo acontece quando as crianças brincam e desenvolvem acções comuns entre elas: não é a mesma coisa ser-se menino ou menina, ser da classe média ou de um grupo social com parcos recursos económicos, ser mais velho ou mais novo, veterano ou novato!? Isto para dizer que o contributo da Sociologia da Infância para pensar a redefinição da prática pedagógica dos educadores passa, sobretudo pelo desenvolvimento de uma sensibilidade aos processos sociais que impregnam o quotidiano do jardim de infância, tanto nas relações entre as crianças como entre adultos e crianças e pelo exercício do espírito crítico e da reflexividade como instrumentos para uma intervenção pedagógica avisada, capaz de desconstruir as subtilezas de que se revestem as relações de poder e dominação.
 
A Sociologia da Infância é apenas mais um contributo para o estudo da criança ou assume-se como uma dimensão inovadora nesse campo?
 
A Sociologia da Infância com os seus estudos das crianças deseja contribuir para o alargamento do campo das Ciências da Educação e das Ciências Sociais, não tanto por via do seu espartilhar com o acréscimo de mais uma disciplina e de um objecto, mas antes pelo participar na sua recomposição, uma vez que se considera que a sua inclusão obriga ao exercício crítico da própria sociologia, em particular, da sociologia da educação.
Por exemplo: a inclusão das crianças e do seu ponto de vista no seio das problemáticas da sociologia da educação convida à ruptura com as concepções sociológicas tradicionais e normativas que, ao tomarem a escola ou o jardim de infância como os seus objectos de estudo, deduziram as crianças mais dos quadros instituídos do que das suas acções; a consideração das crianças como unidade de observação pode contribuir para pôr em diálogo áreas da sociologia como a educação, família ou lazer, por exemplo, e assim dar conta dos meandros nos quais se movem as crianças e de qual é o seu papel dentro e entre elas.
O mesmo, em relação à articulação de diferentes disciplinas das Ciências Sociais. Trata-se de indagar a teoria disponível a partir dos problemas particulares colocados por este objecto/sujeito e de mobilizar uma heterogeneidade de olhares para compreender os fenómenos, de combinar várias abordagens teóricas, recorrer a conceitos provenientes de escolas de pensamento diferentes?
Trata-se também de realizar estudos não apenas sobre as crianças, de como é que os adultos disseram as crianças, mas agora, com crianças para descobrir o actor-criança e a sua agência "escondida", dando-lhes voz, isto é: reconhecê-las como produtoras de sentido, com o direito de se apresentarem como sujeitos de conhecimento e assumir como legítimas as suas formas de comunicação e relação. Claro que para isso é necessário o recurso a metodologias interpretativas e etnográficas que convocam os adultos a desafiarem as barreiras do seu próprio adultocentrismo.
 
Como tem sido aceite esta área de investigação no meio académico?
 
O meio académico, incluindo a própria sociologia, não é impermeável às concepções dominantes da sociedade e, portanto, não é indiferente o desigual conhecimento e reconhecimento das diferentes idades de vida como realidades humanas e sociais relevantes, dos que contam ou não como seres sociais e da sua importância no quadro da hierarquização das categorias sociais: o adulto, o jovem, a criança e os idosos.
O lugar marginal e o desinteresse a que têm sido remetidas as crianças, tanto maiores quanto menores são as suas idades, é sintomático disso. Também não é por acaso que mesmo tendo mantido um crescimento sustentado ao longo das últimas três décadas, a Sociologia da Infância tenha sido apenas reconhecida pela Associação Internacional de Sociologia em 1990.
De facto, entre um discurso dos direitos da criança e as dificuldades no reconhecimento da sua cidadania epistemológica - o reconhecimento das crianças como protagonistas e repórteres competentes das suas experiências de vida -, aquilo que se sabe acerca dos seus mundos sociais é quase nada? mas é inegável que desde então os progressos vão sendo cada vez mais visíveis, até mesmo entre nós.


O contexto português


Que evolução tem registado esta área de investigação em Portugal?

 
Portugal está a dar os primeiros passos. Tanto quanto sei ainda somos poucos a trabalhar nesta área. Uma das pessoas que no nosso país começou de forma pioneira a abordar as questões da infância, na perspectiva de reconhecer a criança como um actor social, foi o professor Raul Iturra e a sua equipa.
Actualmente, um bom exemplo do trabalho que tem vindo a ser feito é o realizado pelo Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho (UM), através do professor Manuel Jacinto Sarmento, que coordena o mestrado em Sociologia da Infância, o primeiro do género em Portugal, a funcionar há dois anos. Foi também da UM que partiu a iniciativa de realizar o congresso internacional "Os Mundos Sociais e Culturais da Infância", em 2000.
Depois, vou tendo notícias de que, quer no Instituto Social de Ciências do Trabalho e da Empresa no departamento de Sociologia, quer na Universidade Nova de Lisboa, no departamento de Antropologia, começa agora a haver gente interessada nesta problemática, tanto professores como alunos. É uma área que pouco a pouco está a chegar às universidades portuguesas e a ganhar reconhecimento institucional.
 
Que contributos trouxe a realização do congresso que referiu?
 
O principal contributo traduziu-se numa enorme visibilidade social, desde logo porque foi um acto público, aberto a investigadores, profissionais de educação e de outras áreas que lidam com a infância. Foi também uma oportunidade para, num curto espaço de tempo, tomar conhecimento não só dos estudos que se vão fazendo mas também de um conjunto de intervenções em diferentes áreas e instituições e de ouvir e trocar impressões com investigadores estrangeiros com trabalho produzido no âmbito da Sociologia da Infância.

A publicação de duas revistas - Arquivos da Memória e Forum Sociológico - é mais um exemplo do seu crescente reconhecimento...
 
Sim, é outro sinal visível de que algo se começa a transformar ao nível do reconhecimento institucional deste campo e de que ele começa a ganhar um crescente interesse relativamente às possibilidades de investigação.
 
Pensa que a escola - neste caso ao nível dos jardins de infância - e os educadores valorizam de algum modo os ensinamentos desta área ou esse interesse é ainda muito incipiente?
 
É difícil responder. Pessoalmente, e daquilo que tem sido a minha experiência com educadores de infância, considero que, neste momento, as preocupações da sociologia da infância têm pouco impacto, tirando algumas excepções, obviamente. A sensação é a de que estou a falar de algo acessório ou de que estou a levantar problemas onde eles não existem. A da preocupação tremenda por parte das educadoras com a propedêutica da escrita e da leitura que, com a invasão das respectivas fichas, tornam o jardim de infância cada vez mais escolarizado, persiste o discurso de que "ali tudo é de todos e é igual para todos", "ali são todos iguais" e, ainda, o que articula o lúdico e o pedagógico.
Estes últimos, podem ser bons princípios mas se as educadoras não desenvolverem uma atitude investigativa de natureza sociológica que lhes permita ler as práticas do jardim de infância, das crianças e das famílias, na sua diversidade, como objectos de conhecimento social, e se nessa reflexão não tiverem em consideração o político, o social e o cultural, dificilmente estarão a intervir para minimizar as desigualdades sociais que também se reproduzem no seio jardim de infância.


Entrevista conduzida por
Ricardo Jorge Costa

 


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 117
Ano 11, Novembro 2002

Autoria:

Manuela Ferreira
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação da Univ. do Porto
Manuela Ferreira
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação da Univ. do Porto

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