Imagem mediática do consumidor de heroína: o escravo da substância.
O corpo está sujeito aos imperativos da agulha com que se injecta (chuta).
O síndrome de privação obriga às acções mais mirabolantes e
impensadas: o roubo, a prostituição, o tráfico. Mas é a heroína a única responsável
por esta série de consequências nefastas? Por um lado, assistimos à defesa das
abordagens biopsicossociais, à nomeação infinita da tríade substância-indíviduo-meio;
por outro, a agudeza dos exemplos evocados suscita o primado da substância:
a heroína tiraniza efectivamente o indivíduo.
Não estaremos a tomar a parte pelo todo? O consumo de heroína não produz um
arrumador de carros se não em circunstâncias e percursos biográficos bem específicos.
O indivíduo arrumador de carros aceitou em si certas hipóteses desviantes; do
mesmo modo, certas esferas sociais, que poderiam ter efeitos protectores, não
funcionaram. Vamos fazer um pequeno exercício sobre algumas etapas importantes
no percurso de um heroinómano.
A consciência da privação e o modo como cada um se relaciona com a ressaca opiácea
é a primeira consideração a ter aqui em conta. Em casos mais extremos, a privação
tem um absoluto primado sobre as outras dimensões da vida. Nem sempre isso acontece:
muitos indivíduos tentam coordenar as exigências da privação com outras obrigações
quotidianas. Disse-nos um utente: ?não é só a ressaca que manda, tenho também
de ganhar a vida...? O modo como a privação é experienciada pode ajudar-nos
a compreender certos percursos.
As redes informais de suporte são outra dimensão importante a considerar aqui.
O indivíduo pode ter o cuidado de esconder que é toxicodependente em certos
ambientes e, por isso, tem uma preocupação de contenção dos seus actos. Ou as
amizades são apenas desviantes: não há preocupação de contenção; há uma aprendizagem
mútua das melhores formas de se consumir mais.
É no contexto destas associações, muitas vezes fugazes, que as hipóteses desviantes
se vão formulando ? roubo, tráfico, prostituição, entre outros. Ainda assim,
estas escolhas não são consequências automáticas da substância. Há sempre margem
de escolha do indivíduo a partir de uma imagem que tem de si; a partir de condicionantes
sociais e educacionais. Uma toxicodependente, em consulta connosco, resumiu
sucintamente a questão: ?foi-me vedado tudo: pela situação, pelo dinheiro e
por mim mesma? (recusando a hipótese da prostituição que lhe era acessível).
Passamos agora a duas esferas socializadoras de suma importância em todos nós:
a família e o trabalho. Muitos indivíduos mantêm atitudes de contenção e de
dissimulação dos consumos perante ambas as instâncias. Há a expectativa do castigo
ou da rejeição. O momento da revelação ou descoberta do estatuto de toxicodependente
assume-se, pois, como um momento charneira.
Há famílias que não aceitam o facto, pressionando o indivíduo a tratar-se; há
outras que não gerem bem a situação. Vão cedendo às chantagens, vão dando dinheiro
para os consumos. Em suma: vão aderindo ao funcionamento do membro da família
que é consumidor. Escusado será dizer que nestes casos a tendência apontará
para um maior envolvimento com as drogas.
O caso do trabalho é semelhante à família. O esconder os consumos no contexto
profissional promove atitudes de contenção. A própria ocupação do tempo possui
uma faceta estruturante que não deve ser esquecida. A descoberta que um empregado
consome, ou o despedimento do próprio, ao sentir aproximar-se essa descoberta,
precipita as coisas: no sentido do tratamento, em indivíduos sem grandes ligações
aos sub-mundos desviantes; no sentido de um aumento, por vezes exponencial dos
consumos, nos casos em que as hipóteses desviantes são plenamente formuladas,
agora sem nenhum obstáculo que as relativize.
A deriva opiácea, quando todas estas esferas socializadoras são quebradas, instala-se
plenamente. A imagem extrema que invocámos no início do texto tem agora plenas
condições para se desenvolver. O indivíduo vive em função da substância, em
função do evitamento da privação. Mas este estado é um produto directo dos efeitos
da heroína? Existem, como vimos, muitos outros factores biográficos que nos
ajudam à compreensão do fenómeno.
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