Depois de quase duas décadas de expansão e euforia parece
que o capitalismo está, de novo, perante uma crise de acumulação. Tendo começado
no Japão, a estagnação ameaça agora as economias americana e europeia, com as
receitas monetaristas a não surtirem qualquer efeito na reanimação do crescimento.
Por seu lado, a destruição colossal de capital provocada pelo esvaziamento da
bolha financeira mostra que, à revelia de tudo o que foi escrito pelos teóricos
liberais e papagueado pelos comentadores de turno nas televisões e jornais de
sempre, o limite não é o céu.
Não podendo, por interesse próprio, arrepiar caminho, e confiantes na hegemonia
teórica exercida pelas escolas liberais de economia e gestão, as forças conservadoras
propõem mais reformas que insistem em chamar de modernizadoras. Tomando-nos
por tolos deslumbrados no jardim das delícias do liberalismo, reclamam mais
mercado, mais flexibilização, menos Estado, enfim, mais do mesmo vendido como
natural, progressista, e inovador. Como se as teorias clássicas de Ricardo e
Adam Smith, seus ?santinhos? inspiradores, fossem coisas novas...
Donde vem e o que significa o liberalismo? O economista e antropólogo Karl Polanyi
desvenda-o em A Grande Transformação, a obra magistral sobre as origens políticas
e económicas do nosso tempo, originalmente publicada em 1944. Comecemos pelo
princípio: todas as sociedades e culturas estão limitadas pelas suas condições
materiais de existência. Ou seja, estão submetidas a factores económicos, quer
eles estejam imbricados com os outros aspectos sociais, quer eles estejam pretensamente
separados, autónomos, como acontece com o liberalismo. No caso deste a grande
novidade é o mercado auto‑regulado unificado, primeiro nacional, posteriormente
mundial, que vai eliminando os mercados locais e regionais muito fragmentados.
Mercado voraz, ele exige que tudo se transforme em mercadoria, incluindo o trabalho,
a terra e a moeda.
Analisemos mais de perto o trabalho, sobre o qual a direita ?caseira? promete
a maior das reformas modernizadoras. Como traz à existência Polanyi, o trabalho
não é mais do que o nome para as actividades que acompanham a vida, é a própria
vida em si. Ora, não sendo esta produzida para a venda, é completamente fictício
descrever o trabalho, à priori, como mercadoria. Ao contrário do que querem
fazer acreditar os liberais, o mercado concorrencial de trabalho não é coisa
antiga nem, menos ainda, o laissez-faire é o regime natural de organização social.
São antes efeitos da acção deliberada da burguesia e da intervenção do Estado,
muitas vezes violenta, que impôs os mercados à sociedade por razões não económicas.
A partir do século XIX, os efeitos destrutivos do mercado concorrencial de trabalho,
recém instaurado, são limitados pela introdução de mecanismos de protecção dos
trabalhadores, em boa medida impulsionados pela acção dos movimentos operários
e políticos de esquerda. A partir daqui a história parece repetir-se. A cada
colapso do capitalismo, como aconteceu no final dos anos 20, os liberais apontam
o dedo acusador às políticas sociais de regulação dos mercados, incluindo o
do trabalho.
Neste momento difícil não basta dizer ao ministro dos patrões e a estes ? que
pugnam pelo mercado de trabalho auto-regulado ao mesmo tempo que reclamam do
Estado medidas de protecção contra o livre mercado de capitais ? que não compramos
velho por novo. Porque o que está efectivamente em causa é a preservação de
medidas de protecção em relação aos mercados auto-regulados que, deixados em
roda livre, não mais farão do que corroer a humanidade e, no limite, destruir
o planeta e a própria vida, abalancemo-nos a projectar as nossas perspectivas:
esta crise de acumulação do capitalismo pode constituir uma oportunidade para
empreendermos uma ruptura radical em direcção a uma sociedade plenamente democrática,
como nos propõe Polanyi, na qual os ganhos privados já não constituirão o estímulo
geral das actividades produtivas, nem o direito atribuirá às pessoas privadas
a posse dos principais meios de produção.
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