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Falta-nos um Kyoto da cultura?

Imaginemos um Primeio - Ministro a postular uma nova via para o nosso país: a cultural?

Imaginemos, por um momento, que daqui a dois anos o então Primeiro Ministro chega à Assembleia da República e declara:
?Nestes últimos anos, colocámos todos os nossos esforços na redução das nossas dívidas e no controlo das finanças públicas. Os resultados não são negligenciáveis, mas torna-se necessário ter em conta a seguinte constatação: o desemprego continua a afligir-nos, a pobreza não recua, o abandono escolar persiste em fazer estragos, a nossa sociedade conta ainda com um número inaceitável de excluídos. Proponho por isso explorar uma nova via que nada tem a ver como o economicismo destes últimos anos, nem mesmo com a actual democracia. Chamarei a esta nova via a opção cultural. Trata-se duma escolha política indispensável que assenta sobre as seguintes vertentes : 1) O princípio fundamental da nossa sociedade é o respeito das pessoas, da sua inteligência e da sua criatividade. 2) As nossas grandes riquezas são a acção e a inteligência, devendo elas fazer parte do património que legaremos aos nossos filhos. 3) A terra na qual vivemos está-nos emprestada, por isso não temos o direito nem de a destruir, nem de a alterar. 4) O mundo é, um pouco por todo o lado, cada vez mais constituído por pessoas e famílias de diferentes culturas e, por vezes, de diversas línguas. 5) O sofrimento e a morte não são considerados mais, como no passado, fatalidades absolutas. Aliviar aqueles que sofrem, dando-lhe esperança, é uma atribuição do Estado. 6) A abertura ao mundo faz-nos ter em conta quanto a actual distribuição de riqueza é inaceitável. 7) Os investigadores, os criadores e os artistas são convidados em participar, de pleno direito, nos grandes debates de decisão política.? 
A serem levados à prática estes princípios, estaríamos certamente em presença de um outro país, baseado numa opção cultural que faz apelo a novos valores. Uma opção que se caracteriza por uma outra maneira de pensar e de agir, que regula a perspectiva económica de uma outra forma e a coloca ao serviço da criação e da inovação.
Algumas ideias, que aqui são respeitosamente colocadas na boca do Primeiro Ministro, estão para além do quadro habitual das artes e das letras. A cultura pode-se resumir através de alguns verbos fortes: inventar, criar, comunicar, fazer sonhar, e, uma vez que ela tem por função fazer descobrir, por uma certa maneira de ler a vida, o mundo que nos envolve, bem como as grandes mudanças que estão à nossa porta. Ela é uma questão de qualidade de vida e essencialmente um valor civilizacional que obriga a que o Estado faça dela uma das suas prioridades e que a sociedade civil a trate com todo o respeito e dela se sirva como um meio de difusão e de desenvolvimento.
É sabido que vivemos uma época em que a diversidade cultural está ameaçada devido ao impacto que o liberalismo das trocas comerciais tem sobre a capacidade dos Estados de suportarem uma expressão cultural distinta. A este propósito, Francis Fukuyama afirma que um dos motores essenciais que alimentam o processo histórico reside na luta pelo reconhecimento. Este reconhecimento é o que os homens procuram no interior das suas sociedades quando reclamam o respeito pela sua dignidade, pelo seu estatuto, pelos seus direitos. Esta aspiração apaixonada para com o reconhecimento assenta nos princípios da História, isto é, no reconhecimento dos seus mitos, seus ritos, sua identidade, etc. Todavia, nos tempos que correm, assistimos, cada vez mais, à negação da dignidade do outro, à aceitação acrítica das invasões desencadeadas pelas multinacionais do entertenimento, que acabam por excluir (destruir) as culturas locais.
Com efeito, a diversidade cultural está ameaçada pelo impacto que a liberalização das trocas comerciais tem tido sobre a capacidade dos Estados e dos governos em sustentar uma expressão cultural distinta. É conhecido o actual desequilíbrio das trocas culturais no plano internacional. A colocação em prática dum instrumento com os contornos expressos na primeira parte deste texto, parece-nos obviamente interessante.
Será pois pertinente pensar num protocolo "de Kyoto" para o cultura? Por que não ? Não é já evidente que as bases em que repousa o modo dominante da comunicação deslizam cada vez mais, no campo da cultura, para o monólogo, contrário às trocas e à diversidade cultural entre as nações ?
Pensar, a breve prazo, na criação de um instrumento jurídico autónomo (tratado, convenção) à escala mundial, seria o equivalente, em termos de significado e importância, ao que tem o protocolo de Kyoto para o ambiente. Isto é, acautelar os princípios da equidade e da sustentabilidade, garantindo que, no futuro, a salvaguarda da diversidade cultural continua a ser um dos direitos dos povos e do progresso da humanidade.


  
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Edição:

N.º 117
Ano 11, Novembro 2002

Autoria:

António Mendes Lopes
Instituto Politécnico de Setúbal
António Mendes Lopes
Instituto Politécnico de Setúbal

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