Não vale a pena fingir que não se vê, tamanha é a visibilidade
que o debate sobre os rankings de escolas atingiu e quão confrangedora é a leviandade
com que o assunto vem sendo tratado.
Santos Silva, Joaquim Azevedo e outras raras vozes lúcidas são excepções à regra.
Já disseram o essencial, mas não terão eco significativo nesta liça que promete
manter-se no nível da indigência. O mais provável é que se continue a confundir
argumentos com especulações e, assim sendo, todos ralhem e ninguém tenha razão.
À semelhança do que aconteceu na recente contenda entre a Espanha e Marrocos,
a razão não será exclusivo de uma das partes. Ou, se quisermos, razão terá a
pastora que viu mergulhar de susto nas águas do mediterrâneo quatro das suas
cabrinhas, inocentes criaturas que tanto lhe terá custado cuidar...
A pastora que reivindica indemnização pela perda dos pobres animais assemelha-se
a um compadre que eu conheço. Mora na minha rua e tem-me pedido que coloque
a pontuação numas cartas que escreve a um seu compadre emigrado na Alemanha.
Bateu-me à porta, recentemente, com um envelope na mão, em demanda da correcção.
Isto acontece desde o dia em que um ?idiota com canudo? ? ou ?pessoa
de vistas curtas, apesar de se dizer um setôr?, conforme as designou o compadre
? maldosamente criticou a escrita sem pontuação adoptada pelo compadre.
Analisando o conteúdo da carta, verifiquei que o compadre não se queda pela
leitura da Bola ou pelo êxtase do folhear da Nova Gente. O compadre está atento
aos telejornais. E não tive coragem para macular a carta com alterações conformes
à arte de bem pontuar. Se a estas e a outras liberdades se entregam galardoados
com o Nobel da Literatura, por que não se permite que o compadre dê largas à
inovação? E o Habermas que me perdoe mas o estilo adoptado pelo compadre até
consegue imprimir um cunho pós-moderno ao texto. No pressuposto de que o compadre
também me perdoará a inconfidência, aqui vos deixo alguns excertos.
?(...) Porque até lhe tinham dito que a escola onde meteu o moço no ano passado
era das melhores e que neste ano aparece no fundo da tabela e até uma senhora
que parece que é doutora escreveu nos jornais que o sistema não presta e veja
lá ó compadre se ela é mesmo doutora como diz e não tem confiança como é que
a gente a há-de ter inda pra mais está aflita de os catraios não poderem ir
para as universidades da europa onde o compadre mora que ela até falou na Heidelberga
acho que é assim que se escreve que é aí pertinho e por aqui eu já nem sei se
deva pôr o meu ganapo na universidade dos pobres e remediados onde ainda me
fica um gandulo ou se o meta numa particular que me vai custar os olhos da cara
mas onde como disse a doutora mesmo os que são uma nódoa saem doutores (...)
como uma desgraça nunca vem só o compadre neca ficou de cama já vai para uma
semana por via de uma discussão com o toino beato que é um vizinho temente a
deus e respeitador das autoridades mas também é um venenoso que já quando o
catraio andava no ciclo e tirava mais quatros que o filho do neca entesava-se
e atirava que as escolas não tinham culpa da estupidez dos filhos dos necas
olhe compadre foi uma discussão do caraças e o neca até atirou com a do filho
do toino que quando veio embora do seminário já trazia vantagem como o benfica
nos ranquingues dos futebóis e que houve escolas que disseram que foram prejudicadas
pelos alunos da consulta externa que foram esses externos que as puseram nos
últimos lugares e a gente ainda vai ir ver os ranquingues dos hospitais que
curam mais doentes e dos lares da terceira idade que matam menos velhinhos e
por aí adiante que a gente não pode ficar ignorante toda a vida que eu sei é
que o meu ganapo me vai acabar este ano os estudos e ó pai tu nem penses que
eu cá precisava de mais de vinte valores e os dezanoves viste-os e os senhores
do ministério pensam que a gente somos todos uns analfabetos e agora estão sempre
a malhar nuns senhores das ciências de educação ou lá o que é que dizem que
os exames não servem para nada e um vizinho o zeca bife disse que é verdade
que meteu uma coisa que se chama recurso e vai-se a ver o catraio do vizinho
passou de 14 para 20 (...) de modos que a gente andamos cada vez mais baralhados
e também veio um senhor doutor explicar que as notas era conforme os pobrezinhos
de cada concelho e coisa e tal e a gente ficou a perceber o mesmo (...) vossemecê
nem sabe a sorte que teve de ir ganhar a vida nas alemanhas que eu só digo asneiras
a ver o telejornal na televisão e a minha patroa até me disse que eu devia ter
mais tento na língua e que eu num tinha a inducação que devia ter mas eu dei-lhe
a inducação que ela já nem cheirou a novela nem o resto daquele concurso do
elo mais fraco e ela que é uma vingativa até me virou as costas na cama mas
até nem me importo que isto da desobriga é como os ranquingues que a gente quando
é novo começa nos topes da qualidade do serviço prestado e vai-se a ver não
tarda já a gente está a apontar para o prego e a dar com o martelo no dedo
mindinho mas por falar no concurso eu até dei por mim a pensar que os ranquingues
até que poderiam servir para alguma coisa pois o que é que a gente há-de fazer
se há escolas que num ano estão em cima e no outro estão em baixo e eu acho
que o melhor é o senhor ministro fazer como aquela senhora do concurso e fechar
as escolas que são o elo mais fraco e mandar os alunos para as escolas que estão
no ciminho da listas e eles ficavam logo espertos e os ranquingues assim já
serviam para alguma coisa e o ministério era assim a modos que um extintor porque
se já mandou extinguir outras coisas (...) e por aqui me fico querido compadre
que a clarinda já ressona e eu não quero estragar uma noite de sossego (...)?.
Vox populi...
Se nos abstrairmos do seu peculiar estilo, o compadre consegue ser bem mais
coerente e explícito do que certos autores de editoriais. Piaget escreveu que
as ciências sociais têm "o triste privilégio de tratar de matérias
em que todos se julgam competentes". O nosso tempo não é propício à
reflexão fecunda, a discussão do essencial é preterida e assistimos à exibição
do fácil acessório. Os jornais são enxameados de tolices subscritas por políticos
que se atrevem a discorrer sobre Educação ou por um ou outro jornalista com
aspirações a opinion maker.
Com rankings ou sem rankings, a avaliação das escolas não pode continuar a ser
um entretenimento de jornalistas ignorantes dos mais elementares saberes das
ciências da educação ? ciências apenas ?ocultas? para aqueles que, boçal e impunemente,
as criticam, ou nelas se aventuram como cegos num labirinto. De nada adianta
querer transformar as ciências da educação em bode expiatório dos males que
afectam o sistema, porque, na realidade, essas ciências apenas ornamentam decretos
e ainda não entraram nas escolas.
Poder-se-á dizer deste texto o mesmo que dos restantes: pouco ou nada acrescenta.
Porque a sua modesta intenção é a de propor que se vire o disco e não seja escutada
a mesma música. Talvez, num destes dias, alguém descubra que as preocupações
com os rankings são migalhas, se comparadas aos problemas que, a montante do
sistema, condicionam as notas dos exames de 12º ano. Eu não consigo entender
por que razão se perde tanto tempo com inúteis exercícios de análise de resultados
escolares dos finalistas do secundário aspirantes a um lugar na Universidade,
quando somos postos perante o drama da maioria dos alunos das nossas escolas,
com o drama dos que nunca chegarão à Universidade, dos que não completam o secundário,
dos que não acedem ao secundário, dos que entram desqualificados e sem um diploma
no mercado de trabalho... porque nem sequer completaram a escolaridade básica
de nove anos.
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