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O outro afinal também somos nós (conclusão)

Relato de um esquema levado a cabo pelos junkies para conseguir dinheiro. A cena é montada junto de um quiosque onde se vendem módulos de transportes?

A pensar em certos utilizadores de heroína, os chamados junkies, e a ter em conta as suas práticas e a respectiva centralidade que o consumo desta droga tem para as suas vidas, há uma conclusão que urge tirar: enquanto população completamente destituída de recursos monetários, o dinheiro arranjado para a compra da droga tem, forçosamente, que ser colectado na interacção com aqueles que o possuem, ou seja, os não utilizadores. Por definição, aquilo a que se tem chamado "a vida da droga" decorre da relação estabelecida entre aqueles que a utilizam e aqueles que não o fazem.
Levando mais longe esta proposta de enquadramento da questão, gostaria agora de comentar um esquema, nome dado pelos junkies de Lisboa aos muitos expedientes levados a cabo para conseguir dinheiro. A cena ? e é propositado o uso da linguagem do teatro ?, montada junto de um quiosque onde podem ser comprados os módulos que dão acesso ao transporte nos autocarros urbanos, foi-me contada nos seus pormenores por uma utilizadora de heroína. Com um telemóvel desligado na mão, ligeiramente afastada do quiosque e esperando alguém que tivesse acabado de adquirir módulos, ela dirigia-se a um recém comprador e contava-lhe uma história: que perdera a carteira e, com ela, o passe, o porta-moedas e o cartão de débito. Assim impossibilitada de ter acesso a dinheiro para carregar o celular, ou seja, sem possibilidades para comunicar, e longe da sua habitação ? a cena passava-se ao princípio da noite ? a mulher solicitava uma senha para poder efectuar a deslocação de volta a casa. Colectados alguns módulos, de preferência em número correspondente ao valor de compra de uma dose de heroína, estes voltavam a ser trocados por dinheiro, no mesmo quiosque onde, havia pouco, tinham sido comprados.
Este e outros esquemas confirmam os junkies como especialistas do interstício. Era na criação de uma inconsistência entre a sua aparência ? vestida como uma trabalhadora de um escritório ? e o período durante o qual se efectivava a sua presença na rua que resultava a produção de um lugar simbólico intersticial gerado por um deslocamento na coordenação entre o tempo e espaço de trabalho de uma mulher e o seu tempo e espaço domésticos.
Mas, para além disso, é de notar que o esquema era eficaz na medida em que resultava da performance pública de um conjunto de comportamentos hegemónicos sendo que era porque conhecia os fluxos do movimento urbano, porque se adaptava a eles e porque exercitava esses comportamentos que esta mulher conseguia ter dinheiro para comprar heroína. A droga, aduza-se, era comprada no Casal Ventoso, bairro onde as actividades de venda eram organizadas pelos traficantes, também eles não utilizadores. Em resumo, afastada do mundo, que é como quem diz afastada dos não utilizadores ? qualidade geralmente atribuída aos toxicodependentes ? esta mulher nunca teria conseguido drogar-se.
Para além de não corresponderem à realidade empírica, são as concepções que encerram o toxicodependente num mundo próprio que têm permitido uma série de formulações em que estes aparecem como um bando vivendo fora e em oposição à sociedade. Sem querer afirmar que os utilizadores de heroína não possuem práticas e concepções que lhes são características ? é claro que, como qualquer outro grupo social, as possuem ?, o que se pretende aqui é afirmar que a sociedade somos nós todos. Sem este ponto de partida o discurso que legitima as medidas repressivas reproduzir-se-á sem que a situação de impasse em que estamos seja realmente resolvida.

Nota: No artigo publicado na edição de Junho o título deverá ser "Dos que se arrumam, arrumando" e não "Dos que arrumam, arrumando", como foi por erro grafado.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 116
Ano 11, Outubro 2002

Autoria:

Luís Almeida Vasconcelos
Univ. Técnica de Lisboa
Luís Almeida Vasconcelos
Univ. Técnica de Lisboa

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