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Para além da unidimensalidade: Marcuse e a tecnologia

Há no seio da ciência social um denso debate sobre o que representam as tecnologias. De forma pioneira e clássica, deve-se reconhecer a Max Weber a abordagem do assunto, pois foi ele quem introduziu o conceito de racionalidade para definir a maneira da actividade económica capitalista, o tráfico social regido pelo direito burguês e a dominação burocrática.

Quer dizer, a racionalização significa a ampliação das esferas sociais, sendo estas submetidas aos critérios de decisão racional, ao que corresponde a industrialização do trabalho social. A consequência disto é a penetração dos critérios de acção instrumental noutras esferas da vida, a exemplo da urbanização das formas de existência, da tecnização do tráfico e da comunicação.
A discussão sobre tecnologia foi intensificada no âmbito da Escola de Frankfurt: A crítica daquela é uma característica dos escritos dos teóricos desta, sendo o seu alvo a dimensão instrumental. Adorno e Horkheimer afirmam que a instrumentalização da tecnologia é, ela própria, uma forma de dominação, que controlando objectos, viola a sua integridade, suprimindo-os, destruindo-os. Herbert Marcuse, no entanto, foi mais longe.
Ele tomou como ponto de partida as análises weberianas para demonstrar que o conceito formal de racionalidade que Weber extraiu da acção racional do empresário capitalista e do trabalhador industrial, da pessoa jurídica abstracta e do funcionário moderno, e que relacionou a critérios da ciência e da técnica, tem implicações determinadas com conteúdo próprio. A tese marcuseana é que, naquilo que Weber chamou de racionalização, não se implanta a racionalidade como tal, mas, em nome da racionalidade, uma forma determinada de dominação política oculta. Trata-se de entender que determinados fins e interesses da dominação não são outorgados à técnica apenas posteriormente e a partir de fora: Eles estão já inseridos na própria construção do aparelho técnico, sendo a técnica, em cada caso, um projecto histórico-social, nele se projectando o que uma sociedade e os interesses nela dominantes pensam fazer com os homens, as mulheres e as coisas.
A tecnologia, conforme as anotações marcuseanas, desempenha um papel central naquilo que foi chamado de sociedades capitalistas avançadas. Ela contribui para que a dominação tenda a perder o seu carácter explorador e opressor, tornando-se "racional", sem que por isso se desvaneça a dominação política.
É neste quadro que se produz um ser humano unidimensional, e que actualmente, com o fetiche em torno das novas tecnologias ? e não só -, é uma hipótese a merecer uma consideração acrescida. Como também uma consideração acrescida parecem merecer as indicações fornecidas por Marcuse para a superação do aludido quadro. Elas advogam uma mudança nas bases da ciência e da técnica. Para tanto, preliminarmente, destaca-se que a ciência e a técnica, em virtude do seu próprio método e conceitos, projectaram e fomentaram um universo no qual a dominação da natureza se vinculou à dominação dos seres humanos.
Assim, defende-se uma reconceptualização da ideia de progresso, pondo-se ênfase na mudança de sua direcção, como uma condição que, rompendo com a instrumentalização, influencie também a própria estrutura da ciência. Disto decorre que as suas hipóteses desenvolver-se-iam num contexto experimental essencialmente diverso ? de um mundo libertado -, com a ciência chegando a conceitos sobre a natureza profundamente distintos, estabelecendo ao mesmo tempo juízos totalmente diferentes.
Nos dias presentes, ao que Marcuse formulou ? bem como outros frankfurtianos -, têm-se acrescentado elaborações semelhantes. O que só vem evidenciar que hoje, talvez mais do que em seu tempo, faz-se necessário conceber as tecnologias numa perspectiva que se situe para além da unidimensionalidade.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 116
Ano 11, Outubro 2002

Autoria:

Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil
Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil

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