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Os fugitivos

Em finais de Junho os representantes dos senhores do mundo, com o russo a servir de bibelô, reuniram-se num lugar perdido nas montanhas do Canadá, na expectativa de não serem perturbados por manifestações cujos participantes, descrentes das delícias quiméricas prometidas pelo neoliberalismo, gritam que um outro mundo é possível.
O ano passado, em Génova, esta contestação viveu um momento alto, com os manifestantes, às centenas de milhares, a exigirem uma outra globalização. Muitos políticos, com a colaboração diligente de alguns media, ensaiaram a criminalização daqueles que protestavam. Temos de evitar a armadilha das simplificações, colocando de um lado a democracia, representada pelos líderes políticos, e do outro a violência, levada a cabo pelos manifestantes. Esta esteve (e está) presente no campo do poder. Sabemos hoje como Berlusconi planeou e usou a violência com propósitos políticos muito claros, nomeadamente no ataque efectuado pela polícia às instalações do Fórum Social.
Tiradas as lições de Génova, eles e as organizações internacionais ao serviço do neoliberalismo decidiram escolher ora países “musculados”, como o Qatar, ora locais remotos como Kananaskis no Canadá para locais de reunião. Ou ainda, quando não é possível escapar ao espaço europeu, como aconteceu com Barcelona e Sevilha, a fuga invertida, transformando as cidades em praças-fortes de acesso controlado e severamente vigiadas. Incomodados com o protesto, quando estavam habituados ao aplauso, acusam os contestatários de estarem muito longe de pertencer às camadas mais despossuídas e miseráveis da humanidade. Certo, mas será que poderia ser de outra maneira? Olhando para os meses vividos em Moçambique, onde me confrontei com a violência silenciosa imposta pelo neoliberalismo, a revolta dos que podem agir é também feita, em boa medida, em nome e no lugar dos que já nada podem, nem mesmo ser violentos.
É neste quadro social e político agitado que vivemos as vitórias eleitorais da direita em Portugal e França. Como compreender este aparente paradoxo: o reforço do conservadorismo num tempo marcado pelo reavivar da dissidência, alimentada pelo descrédito (mas não a falência) do neoliberalismo e pelo despontar de novos movimentos sociais que, muitas vezes em articulação com os “velhos” movimentos sociais, como os sindicatos, organizam as inquietações e a revolta dos que não se revêem nesta (des)ordem mundial. Estes sucessos parecem mostrar que o neoliberalismo pode bem com o protesto nas ruas e a contestação levada a cabo pelos movimentos sociais. Assim, será que o melhor caminho, tal como defendeu Pierre Bourdieu e pelo qual lutou nos últimos anos da sua vida, é ancorar a luta nos movimentos sociais, secundarizando-se o papel dos partidos políticos e a participação dos cidadãos nos processos eleitorais?
Recentemente, num artigo publicado no Le Monde Diplomatique, Bernard Cassen interrogava-se sobre se valeria a pena continuar a votar, perante o confisco da soberania popular por parte dos chefes de governo reunidos na cimeira de Barcelona. Compreendo mas não concordo. A luta por uma alternativa sistémica tem de ser construída também pela via eleitoral. De outro modo, colocando todos os nossos esforços nos movimentos sociais podemos remeter os senhores do mundo para as montanhas do Canadá, para as areias da Arábia ou, quem sabe, para a Lua, mas não avançaremos o suficiente no essencial: a substituição do capitalismo por um outro sistema, mais racional, ecologicamente viável e humanamente desejável.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 115
Ano 11, Setembro 2002

Autoria:

Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves
Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves

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