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A curiosa "ciência" do Professor Boaventura


Prezados Professores
O Sr. Professor Boaventura de Sousa Santos (BSS), diz (Jornal "a Página" Nº 112, Ano 11, Maio de 2002) que ao longo de duas décadas muitos de vós têm mostrado interesse no seu trabalho, usando os seus livros na preparação das vossas aulas, e recomendando-os aos alunos. Foi, também, por recear isso mesmo que escrevi o livro O Discurso pós-moderno contra a ciência. Obscurantismo e Irresponsabilidade, Gradiva,Lisboa, 2002) que punha, evidentemente, em causa o seu trabalho, mas não, claro e evidentemente, ao contrário do que BSS escreveu, a sua pessoa.

  1. O debate epistemológico
    Não se pode argumentar contra BSS pela razão simples de que raramente usa argumentos. Desta forma, seguindo o seu estilo expositivo, uma resposta possível ao que BSS escreve é pôr um não antes de quase tudo o que afirma sem argumentos. Assim, poderia já começar: O conhecimento científico não é uma construção social, e uma relação directa e imediata entre sujeito e objecto nada tem a ver com isso. O que conta como verdade não é a ausência de conflito.O conhecimento científico não é uma prática (sic) socialmente organizada. O que conhecemos do real não é a nossa intervenção nele, etc., etc. Desta forma se contestariam todas as afirmações que faz BSS, não ocupando muito mais espaço que o do seu texto. Tenho dúvidas, no entanto, que os leitores conseguissem perceber do que se está a falar, e de onde nascem as divergências profundas anunciadas. Por isso, tenho necessidade de ser selectivo, e como por qualquer lado poderia pegar no que BSS escreve, a escolha poderia ser outra.
    Notavelmente, a verdade e a realidade são temas que atravessam toda a filosofia sem terem encontrado o repouso de definições consensuais. No entanto, no caso da ciência, podemos sem grande dificuldade encontrar o que se aproxima de consensos entre os cientistas, e que apenas com traços grossos posso esboçar. A ausência, ou a existência, de conflitos só antepenultimamente estará relacionada ver com a verdade científica. Em forma muito simplificada pode dizer-se que, em ciência, o que se aceita como verdade é a correspondência entre a teoria e a experiência-observação. Este é o momento da verdade (peço desculpa pela imagem tauromáquica) na faina científica. Vamos escolher um exemplo entre inúmeros possíveis. É claro que reconheço o perigo desta abordagem. Limitando-nos a um exemplo (por evidente falta de espaço) parece que haveria dificuldade em escolher outros quando, na verdade, eles são inúmeros ao longo de toda a história da ciência. Assim, no final do século XIX e princípio do século XX era notável o desacordo entre os que defendiam a existência real de átomos (por exemplo, Planck,convertido por Boltzmann), e os que não a aceitavam (como Ostwald e Mach). E, como sempre, não foi por quaisquer condicionamentos sociais ou culturais que se chegou a acordo, e a existência dos átomos foi "aceite" pela comunidade científica. Concluiu-se que os átomos são entes físicos de que os homens podem ter conhecimento, como 'coisas' do 'mundo exterior', com os sentidos, por si só ou ajudados com instrumentos, guiados pelas teorias compreensivas que se vão elaborando.. No caso de Ostwald (Mach manteve-se renitente, creio, até à sua morte) e muitos outros, o que os convenceu foram as teorias de Einstein e de Smoluchowsky de 1905 sobre o movimento browniano, e uma dúzia de formas diferentes nelas sugeridas para calcular experimentalmente o valor da constante de Avogadro. Os resultados experimentais de Perrin, a partir das teorias referidas, tiveram, depois, um papel decisivo. Nada de selecções socialmente motivadas ou causadas. Este é um exemplo notável, mas não excepcional, do que sempre acontece em ciência. É a evidência teórico-experimental, afirmada vencendo sempre um "cepticismo" sistemático, o factor decisivo da aceitação ou recusa do que surge como novo, não o meio social ou os interesses individuais, mutáveis e particulares.
    Uma das características estilísticas dos escritos de BSS são as mantras que surgem aqui e ali, e que tanto gosta de recitar: todo o conhecimento é autoconhecimento; toda a ciência natural é ciência cultural, a ciência é autiobiográfica,etc. Agora, depois de uma frase délfica: as acções científicas tendem a ser mais científicas (sic) que as suas consequências (o que será que isto quer dizer? Experimentemos o contrário:'as acções científicas tendem a ser menos científicas que as suas consequências'. Como se verifica, o sentido -ou o sem sentido-é o mesmo). E logo continua: É por isso (sic) também que (e esta é a mantra) os novos conhecimentos geram novos desconhecimentos...Quando me encontrei com esta mantra pela primeira vez (em Um discurso sobre as ciências), nem sequer me referi à sua obscuridade aparente não fosse ela relacionar-se com uma metáfora muito conhecida de Pascal quando este fala da esfera do conhecimento científico que, com o tempo, vai aumentando de volume. Assim, na superfície crescente desta esfera estão os pontos na fronteira com a ignorãncia, o desconhecimento. Mais conhecimentos, pois, maior volume, mas também maior área da superfície que confina com a ignorância. Assim, pode-se concluir, metaforicamente claro, que a relação entre a ignorância e o conhecimento é reciprocamente proporcional ao raio do volume do conhecimento. No limite, fazendo tender R para o infinito (para o conhecimento divino, provavelmente), esta relação entre ignorância e conhecimento é igual a zero. Seria isto o que queria dizer BSS? Não era, infelizmente. Num livro publicado dois anos depois, Introdução a uma ciência pós-moderna, percebia-se o que queria dizer. Por influência de outros autores ( que cita), pretende que, a dada altura, se estabelece uma competição darwiniana entre teorias. Uma delas é seleccionada porque melhor se adapta às condições sociais do meio. A partir daí, o nosso conhecimento fica determinado pela teoria socialmente vencedora. As outras que foram excluídas desaparecem deixando, pois, de contribuir para os "conhecimentos". Os "desconhecimentos" estão associados, assim, a estas teorias eliminadas que teriam produzido os seus próprios "conhecimentos". Para melhor perceber este pensamento profundo recorramos à evolução e adaptação biológicas. Os dinossauros desapareceram, possivelmente numa catástrofe de Alvarez. Isto permitiu que os mamíferos surgissem como espécies vencedoras e entre estas, notavelmente, a seu tempo,a dos os homens. Isto faz parte do nosso "conhecimento". Mas, com o desaparecimento catastrófico dos dinossauros aumentamos o nosso "desconhecimento" pois ficámos sem poder saber o que poderia ter acontecido com todas as espécies que não puderam surgir. E esta?....
    Percorrendo-se os tortuosos textos de BSS encontramo-nos, chocantemente, com o que deve considerar metáforas. Aqui está mais uma: 'mesmo a imagem mais transparente, a do espelho, é invertida, etc (não percam este etc.). A imagem do espelho é a mais transparente? O que significa isto? Conhecemos da óptica a existência de imagens reais e imagens virtuais. Mas, imagens transparentes de um espelho?... Escusado será dizer que devem ser as minhas limitações físicas (ou poéticas, quem sabe?) socialmente condicionadas, claro, que me impedem de apreciar justamente estes arroubos cognitivos.
  2. Ciência social positivista e crítica
    Quem quizesse demonstrar que a sociologia não é uma ciência (ciência social) encontraria aqui sólidos argumentos para a sua pretensão. Analisemos este claro texto: Ambas (concepção "positiva" e concepção crítica da ciência social) visam analisar a realidade social, mas enquanto a primeira reduz a realidade ao que existe e, como tal, tende a conformar-se com o que existe, a segunda inclui na realidade a sua potencialidade e a sua capacidade para ser de modo distinto daquele que hoje prevalece-e melhor. Portanto temos aqui uma chamada ciência (social) que não se dirige apenas à realidade que existe mas também ( à que não existe) à sua potencialidade (qualquer que seja o significado disto) e capacidade (sic) para ser melhor (sic) da que existe. A primeira (a concepção "positiva") ainda que defenda que se devam separar valores e factos, na verdade (diz BSS) nega que possa...sufragar valores não explicitados. Que ciência esta, eh! eh...? Tudo o resto que diz, e onde infelizmente não nos podemos demorar, serviria para robustecer, como disse, a posição daqueles que negam a possibilidade de existência de uma ciência social, exactamente pela sua inevitável contaminação, por vezes politicamente motivada, com valores e opiniões, por sua natureza, intrinsecamente mutáveis. Se aceitamos a objectividade como critério da possibilidade da ciência (os pós-modernos, digam o que disserem, apenas conservam, prudentemente, o termo objectividade contorcendo, convenientemente, o seu significado), pode-se concluir que BSS, evidentemente, não é um cientista. Mas aqui serve-se da sua curiosa postura assumida de "cientista pós-moderno" (que seria interessante analisar) pois, como quase tudo vale-tão compreensiva ela é-, podemos concluir que, mais ou menos, todos somos cientistas ou, o que vem a dar ao mesmo, ninguém o é. Assim, confunde-se democracia com nihilismo, uma das características fundamentais que alguns pensadores associam ao que se chama pós-modernismo.

  
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Edição:

N.º 114
Ano 11, Julho 2002

Autoria:

António Manuel Baptista
Professor Universitário, Lisboa
António Manuel Baptista
Professor Universitário, Lisboa

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