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Depois de massacre perpetrado num ginásio, o mundo educacional alemão está em estado de choque.

A nação alemã, normalmente mergulhada na apatia do seu opulento bem-estar material e na aparente estabilidade europeia feita de consumismo e dependência dos ditames mercadologistas dos EUA e Ásia, encontra-se actualmente estupefacta perante os sangrentos acontecimentos no ginásio de Erfurt, durante os quais um aluno, após ter sido reprovado em exames, executou 18 professores e alunos, e finalmente se suicidou.
Semelhante violência algo que o alemão comum considerava um fenómeno arredio à sua avançada "civilização" e bem mais próprio do assim-chamado terceiro-mundo, provocou inicialmente apenas reacções de superfície no mundo oficial. Discute-se febrilmente "a partir de quando" é que os jovens estudantes alemães deveriam ter permissão de possuir armas de fogo. Schroeder ameaça mesmo intervir pessoalmente para passar legislação de emergência nesse sentido. Simultaneamente as associações semi-militaristas, muitas delas coladas às idelogias de extrema-direita, fazem pressão política para manter o actual acesso a armamento da juventude, a coberto de pretextos como o amor à caça e ao desporto de tiro.
Uma gigantesca pergunta começa a ganhar forma na consciência dos educadores e pensadores pedagógicos do país: Será que esse banho de sangue, ocorrido no seio de uma escola oficial absolutamente "normal" e perpetrado por um aluno aparentemente "normal", significa um fenómeno de violência isolado, ou representará ele um aterrador indício quanto a dimensões insuspeitas da ideologia estatal subjacente ao actual sistema escolar?
A pergunta arrasta consigo uma multidão de perguntas que ultrapassam até as fronteiras do país: - Quantas crianças haverá nas nossas escolas condenadas a carregar uma profunda cicatriz derivada de uma "repetição de ano" (essa absurda medida anti-educativa que pretende saber inverter o sentido do tempo e a biografia individual de uma criança, como se ela fosse um produto reciclável) ? - Quantas sofrem no seu subconsciente com o humilhante efeito do sistema de "notas de avaliação" (esse esquálido esquema numérico que pretende saber avaliar os esforços anímicos da vida pré-adulta e que termina afinal ensinando às crianças rapidamente como elas se podem comparar com máquinas)? - Quantos alunos, nos nossos actuais sistemas escolares dominados por uma intelectualidade materialista-tecnocrata e uma atmosfera de estafado funcionalismo público, não sofrerão sob os efeitos de gigantescos conflitos pessoais ocultos, verdadeiros dramas íntimos que nas suas vidas adultas encontrarão expressão em variadas formas de anomalias de comportamento social? - Quantas crianças de tenra idade, devido às peculiaridades da sua constituição anímica individual (e que logo nos primeiros anos escolares, são acusadas de "insuficiências" para a futura luta no mercado de trabalho) têm que passar pela experiência dilacerante de serem separadas dos seus camaradas de vida, isto é, a sua classe (esse verdadeiro proto-milieu social onde, entre outras coisas, é exercitada e cultivada a capacidade social de tolerar e amar)? - Quantas crianças, practicamente a partir do berço (com Internet e jogos de vídeo de guerra instalados no próprio quarto de dormir) são impedidas de experimentar a natureza?
Recentemente a Alemanha tinha sido sacudida pelos resultados do Pisa que havia demonstrado que o país ostenta uma miserável posição no final da lista. As reacções do mundo oficial, impregnadas de pragmatismo mecanicista, não se fizeram esperar: considera-se a eventual necessidade de iniciar a instrução escolar bem mais cedo (practicamente ainda no período de jardim-infantil), o reforço do pano-de-fundo industrialista dos programas de ensino e até mesmo colocar um laptop à disposição de cada aluno primário do país.
Pedagogos e educadores de todas as cores deverão agora se mostrar mais propensos a estudar os aspectos profundos da mensagem de Erfurt, em vez de perderem seu tempo com o check-up de fachada de Pisa, que aparentemente havia manchado o orgulho antropológico-educacional da nação de Goethe.
Assim, os eventos de Erfurt deverão servir de incitação adicional para a necessidade de se realizar uma renovação radical nas bases e princípios do decrépito mundo educativo oficial dos nossos dias.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 114
Ano 11, Julho 2002

Autoria:

Raul Guerreiro
Membro do Concelho Federal das Comissões de Pais das Escolas Waldorf, Alemanha
Raul Guerreiro
Membro do Concelho Federal das Comissões de Pais das Escolas Waldorf, Alemanha

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