As subculturas, resultantes de fenómenos de exclusão social,
possuem em si um conjunto de regras cujo incumprimento gera a estigmatização
dos seus membros e dá origem a fenómenos de dupla exclusão.
Os comportamentos desviantes não se resumem às dimensões sociais e espaciais
que analisámos em crónicas anteriores. Tentaremos tecer algumas considerações
sobre as consequências psicológicas da prossecução de actividades
transgressivas. Com efeito, as subculturas constituídas em torno de actividades
condenadas socialmente possuem, a maior parte das vezes normas rígidas de
comportamento, estigmatizando, também elas, todos os seus membros que as não
observam. O fenómeno desta dupla exclusão, consequência de inadaptação às
expectativas normativas e às desviantes, produz diversas figuras que podem,
ainda assim, organizarem-se subculturalmente.
O papel da reputação desempenha uma função de primordial importância nestes
contextos. Cressey estudou, nos anos 30, em Chicago, o submundo das bailarinas
de aluguer. Tratava-se de um conjunto de salões de baile em que o par feminino
era pago para dançar. As senhoras que mantinham a sua reputação de seriedade
eram as mais requisitadas. Mas entramos num paradoxo: eram, da mesma maneira,
as mais cobiçadas sexualmente.
As dançarinas tinham de lidar com expectativas antagónicas: manter uma postura
de seriedade para terem procura de par; gerir a cobiça masculina; manter a
reputação. Qualquer cedência, se reflectida na reputação, poderia ter efeitos
devastadores: ter fama de mulher fácil afugentava a procura; passar diversas
semanas sem dar lucro à casa, poderia implicar o despedimento e a passagem a
formas de prostituição mais declarada.
Um outro exemplo: o do traficante-consumidor, também aqui a reputação - 'o
ser-se de confiança' - desempenha um papel determinante na prossecução da
actividade transgressiva. A situação paradoxal repete-se de forma análoga: um
maior acesso à substância, pressupõe um maior esforço de auto-controle. Um
aumento do consumo poderá beliscar a reputação do indivíduo quer por deixar de
cumprir as suas obrigações perante os seus fornecedores; quer por deixar de ser
um bom vendedor, ao adulterar em demasia o produto, numa tentativa desesperada
de recuperar o equilíbrio entre o deve e o haver. Neste caso, o indivíduo pode
cair facilmente na situação de comprador de rua, sem meios de suprir as suas
necessidades. Torna-se junkie.
Cloward e Ohlin ao proporem uma tipologia de subculturas contemplam
precisamente o caso dos fracassados duplamente. A figura do arrumador de
carros, para retomar o exemplo usado por outros cronistas dos Estados
Translúcidos, organiza-se numa subcultura desse tipo, situada nas margens de
quase tudo: está excluída das soluções desviantes de maior sucesso; a sua
visibilidade social é extrema - o que a elege como condensadora das mais
variadas formas de intervenção; habita o coração automobilizado das cidades,
mas anda a pé.
O curioso, nesta forma de desviância, é que a solução do arrumar carros -
actividade muitas vezes mal vista até por outros consumidores - fornece, ainda
assim, algumas formas de contenção: sentimentos de pertença e de autoria.
Confrontamo-nos com diversos utentes que sublinham o seu profissionalismo em
relação a parceiros de actividade.
Estamos perante adaptações cognitivas a situações de ultradesvalorização
social. O uso de certas justificações permite a manutenção do auto-conceito e
da auto-estima a níveis aceitáveis. Essas racionalizações podem passar pela
valorização de um aspecto particular de uma vivência degradada - p. e. 'arrumo
carros mas, pelo menos, não roubo nada a ninguém'. Ou pelo reconhecimento
implícito do desprestígio da actividade tal como é praticada pelos outros:
'eles (os outros arrumadores) não percebem como eu faço tanto dinheiro, é que
eu sei falar com as pessoas...'
Acrescentemos, pois, a dimensão psicológica a estas esferas de
ultradesvalorização social: à exclusão urbana; à exclusão desviante,
somar-se-ia a exclusão cognitiva. É que as identidades transgressivas encarnam,
se nos é permitida a expressão, tal como acontece com qualquer outra forma de
identidade.
|