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Três perguntas em início de século
    1. Que questões o preocupam mais neste início de século?
    2. Que propostas lhe parecem mais adequadas para resolver as questões que referiu acima?
    3. Num recente inquérito à escala mundial, promovido pela Gallup Internacional, dois terços dos inquiridos refere que o seu país ?não é governado de acordo com a vontade do povo? e mostra-se de modo geral insatisfeita com a qualidade das democracias. Neste contexto, considera importante reforçar o papel da sociedade civil e dos movimentos sociais na construção de novos caminhos para o mundo?

1. Uma resposta a esta formulação específica da questão levar-me-ia a incluir aqui as novas (massificadas e mais elaboradas que no passado) formas de xenofobia e racismo; a reproletarização de amplos sectores das camadas trabalhadoras, desde os imigrantes nas sociedades chamadas desenvolvidas até aos operários dos novos mercados industriais asiáticos e latinoamericanos; a exploração desenfreada e suicidária dos recursos ambientais; a degradação dos sistemas de representação política de massas, que nos habituámos a chamar democracias e que não foram mais do que sistemas elitistas até há anos crescentemente participados para passarem agora a sistemas de consenso pela abstenção (eleitoral, política, social, cultural).
No entanto, todas elas se podem subsumir num fenómeno único: a ampliação a todo o planeta do processo histórico, em curso, da implantação do capitalismo, entendendo por capitalismo todo o complexo de relações de produção, sociais e culturais baseadas na construção/acentuação/valorização da desigualdade e da discriminação, que admite coexistir com (ou segregar de dentro de si) sistemas elitistas de representação política. Como na tese do Big Bang, podemos ter dúvidas sobre quando tal processo se terá iniciado; parece é não restarem dúvidas de que, infelizmente, ainda vivemos uma fase da sua expansão. Se nos centrarmos neste início de século, o que haverá de novo? A concepção e imposição de formas cada vez mais eficazes (porque mais completas, porque abrangendo o maior número de indivíduos alguma vez reunidos na História das comunidades humanas) de manipulação da informação, entendida como explicação do mundo e de cada um de nós. Por outras palavras, o totalitarismo ideológico mais abrangente da História. O conceito de Império recentemente proposto por Michael Hardt e Antonio Negri pode bem servir para ajudar a perceber esta nova fase de expansão do capitalismo, cujo "objecto de domínio é a vida social na sua totalidade". O conceito de Fascismo societal há alguns anos proposto por Boaventura Sousa Santos para designar o "regime social e civilizacional" em que já vivemos, pode servir para nos ajudar a perceber e sintetizar uma nova fase na evolução das sociedades da contemporaneidade, grávidas de verdadeiras ficções acríticas, várias vezes abertamente irracionalistas, que pretendem descrever a realidade social, e até mesmo as vivências de todos como se fossem a de cada um (e vice-versa), através de imagens mediaticamente válidas (e comercializáveis) em curtíssimos espaços de tempo, de rápido consumo, metáforas da "insegurança", da "criminalidade", da "imigração"/alteridade, da "violência", do "protesto", do "terrorismo", ou, pelo contrário, da "democracia", da "liberdade", da família "tradicional", da "Nação", do "sonho" individual...

2 e 3. O nosso ponto de partida não deve ser o do pressuposto de que já tivemos democracias e de que o problema é que elas se têm vindo a degradar; pelo contrário, se sobrevoarmos rapidamente o séc. XX nas sociedades que não passaram pelo modelo soviético ou chinês (aquelas que não se autodefiniram como democracias de modelo ocidental até muito recentemente), não só nunca pudemos falar de democracia funcionando em todas as suas acepções, como há anos se encerrou a fase de maior participação política, de maior legitimação eleitoral da élite governante, que coincidiu com grandes tarefas consensuais como a derrota do Nazifascismo, a construção dos Estados-Providência ou as independências anticoloniais. O desmantelamento de tais consensos e o novo e violentíssimo impulso do capitalismo, a que se tem vindo a dar o nome de globalização, tem conseguido estilhaçar os movimentos sociais que desde o séc. XIX pareciam capazes de organizar submetidos e excluídos, sem que se tenha podido estruturar entretanto uma rede suficientemente apertada de organizações diversificadas e flexíveis, representando múltiplas e simultâneas identidades (sociais, éticas, solidárias, étnicas, grupais), capaz de, pelo menos, embaraçar o Império, os seus processos, a sua lógica. A passagem para uma nova fase histórica pode vir daí; virá, isso sim, seguramente, de um processo interior (individual primeiro e só depois de grupo), crítico da realidade e criador de consciência da injustiça, do conflito, da necessidade da libertação, de um renovado "pursuit of happiness".

Manuel Loff

 

1. O mundo em que vivemos continua a ser um "lugar mal frequentado". O novo século arrasta as misérias, a pobreza, a hipocrisia, a desumanidade histórica. E, no entanto, dizem-nos, estamos na era da abundância, da rapidez, do lazer, do sucesso pessoal e intransmissivel. Caiu o Muro. Temos agora um protector, um só protector: zeloso, atento aos direitos humanos, que nos impõe uma língua, altera a dieta alimentar dos nossos filhos, vende-nos as suas fobias e a sua arrogância. E os democratas europeus, enquanto escorraçam os imigrantes (esses anacrónicos "infiéis"), vêem , calmamente, a emergir a extrema-direita - e andaram a dizer-nos, durante anos, que as ideologias tinham acabado!

2. As ideologias não acabaram. É preciso manter a utopia (utopia é aquilo que sociedade nos impede) de fazer deste mundo a terra dos homens. De todos os homens.

3. O reforço da sociedade civil é fundamental para uma mudança. Se este novo século herdou a desumanidade histórica, é legítimo reivindicarmos a rebeldia transformadora, as convicções, a alegria das lutas por causas colectivas que marcaram outros tempos. Porque a felicidade está vedada aos resignados.

Francisco Duarte Mangas


  
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Edição:

N.º 114
Ano 11, Julho 2002

Autoria:

Manuel Loff
Professor de História Contemporânea, Fac. de Letras da Univ. do Porto
Francisco Duarte Mangas
Escritor. Jornalista do Diário de Notícias.
Manuel Loff
Professor de História Contemporânea, Fac. de Letras da Univ. do Porto
Francisco Duarte Mangas
Escritor. Jornalista do Diário de Notícias.

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