No número anterior de A Página, vimos como a partir de um estudo mundial
conduzido no final de 1999 pela Gallup International, uma organização não
governamental dinamarquesa, foi possível identificar as questões que mais
preocupam as pessoas neste início de século e aquilo que elas consideram ser de
maior importância na vida. Assim, de acordo com as respostas recolhidas, ter
saúde (42%), uma família feliz (40%) e um emprego (23%) são as três escolhas
mais valorizadas pelos inquiridos. Viver em liberdade aparece em quarto lugar
(18,5%), logo seguido por viver num país sem guerra (16%) e num país sem
violência e corrupção (14%). Só depois aparecem factores de ordem individual,
como ter um bom nível de vida, ser fiel à religião ou ter acesso a educação.
Não será de admirar que um factor de ordem económica (ter um emprego) apareça à
frente de um factor de ordem pessoal (viver em liberdade). Mais de metade da
população do planeta continua a viver com menos de 2 euros diários.
Aproximadamente 1,2 mil milhões de habitantes - dos quais 500 milhões na Ásia e
300 milhões em África - sobrevivem mesmo com menos de 1 euro. Os habitantes da
áfrica sub-sahariana são praticamente tão pobres como eram há vinte anos atrás.
A persistência da desigualdade de rendimentos, acentuada na última década, está
a tornar-se endémica. Globalmente, os cerca de mil milhões de habitantes dos
países desenvolvidos beneficiam de 60 por cento do rendimento mundial, ao passo
que mais de metade - 3,5 mil milhões - tem acesso a menos de 20 por cento desse
rendimento. Ao longo da última década alguns países conheceram inclusivamente
um agravamento da desigualdade interna, verificada com particular incidência
nos países do leste da europa. Nos países menos desenvolvidos, as desigualdades
na repartição dos rendimentos são mais acentuadas na América Latina, seguida de
perto pela África sub-sahariana.
Mas o rendimento per capita não ilustra convenientemente a frieza dos números.
Ainda assim, talvez o indicador mais importante seja mesmo as condições de vida
desses excluídos do mundo: cerca de 150 milhões de crianças estão subnutridas,
500 milhões de adultos têm uma esperança de vida inferior a 40 anos,
praticamente 800 milhões não têm acesso a serviços básicos de saúde, 870
milhões são analfabetos e mais de 1200 milhões não tem acesso a água potável.
A menos que se redobre o esforço para ultrapassar esta situação, a pobreza e a
desigualdade irão agravar-se. A população mundial atingiu recentemente os 6 mil
milhões de habitantes. O último bilião levou apenas doze anos a somar-se aos
anteriores, naquele que é o crescimento mais rápido em menor período de tempo
na história do planeta. Em 2025 seremos 8 mil milhões, quase todos vivendo em
países em desenvolvimento e a maioria nos países mais pobres. Mais de mil
milhões de pessoas têm actualmente entre 15 e 24 anos, sendo que cerca de 40%
tem menos de 20. Muitos destes jovens têm ou começam a ter filhos, e a
esmagadora maioria - 98% - nascerá nos países em desenvolvimento.
Esta questão é tanto mais importante para se equacionar a necessidade de
criação de postos de trabalho para o futuro. De um total de 3 mil milhões de
habitantes que constituem a população activa do planeta, cerca de 140 milhões
nunca tiveram oportunidade de trabalhar e cerca de um terço estão
desempregados. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, estima-se
que cerca de 60 milhões de jovens procurem emprego, 80% dos quais nos países em
desenvolvimento. Os que hoje têm idades entre os 15 e os 24 anos terão o dobro
da possibilidade de se manterem desempregados quando atingirem a fase adulta,
com a desvantagem de estarem, em princípio, menos protegidos pela legislação.
Ou seja, o mundo atravessa um desafio a toda a escala no que se refere ao
desemprego juvenil - que só terá tendência para piorar com o actual crescimento
populacional.
Ter um emprego é, como já vimos atrás, um das principais condições para se
viver uma vida feliz. De acordo com o inquérito realizado pela Gallup, é uma
expectativa que aparece como necessidade primordial em países como a Argentina,
o Equador, a Bolívia, o Peru e os Camarões. Em 23 outros países, incluindo a
maior parte da europa de leste, ela aparece em segundo lugar. Pelo contrário,
na Europa Ocidental e na América do Norte ter um emprego aparecia nos lugares
mais baixos da tabela. Na Holanda e na Grã-Bretanha, por exemplo, apenas 5% dos
inquiridos respondeu que esta era um dos dois aspectos que mais valorizava na
sua vida.
Saúde e educação
Os níveis educacionais nos países em desenvolvimento subiram drasticamente na
última metade do século XX. O rápido crescimento económico do sudoeste asiático
deve-se, em grande parte, aos investimentos feitos na educação. Mas muito há
ainda a fazer. Enquanto uma maioria de crianças frequenta a escola, mais de 130
milhões não tem oportunidade de o fazer - cerca de metade delas vive na Índia,
Bangladesh, Paquistão, Nigéria e Etiópia. A estes, juntam-se cerca de 250
milhões de crianças que em todo o mundo trabalham em situações precárias ou em
tarefas perigosas e humilhantes, como a prostituição, que, segundo dados da
Unicef e da Organização Mundial do Trabalho, tem aumentado nos últimos anos.
Assegurar o ensino básico a estas 130 milhões de crianças custaria cerca de 7
mil milhões de euros anuais nos próximos dez anos. Os objectivos das Nações
Unidas passam por assegurar a frequência do ensino básico a todas as crianças
até 2015. Mas, de acordo com números recentes da Unesco, esse objectivo está a
ser cumprido num número muito limitado de países.
Outra questão problemática é a falta de igualdade de acesso das raparigas à
escola. Cerca de 60% das crianças que não frequenta a escola é do sexo feminino
e a segregação no acesso à educação mantém-se acentuada em 47 países. O papel
das mulheres no meio rural continua a ser desvalorizado pelo mundo fora. Isto,
apesar de a experiência ter já demonstrado que o investimento educativo nas
mulheres traduz-se directamente na melhoria da dieta alimentar da família, em
maior preocupação com os cuidados de saúde, na diminuição da taxa de natalidade
e numa redução significativa da pobreza.
Tais melhoramentos, associados a inovações na medicina e uma generalização dos
cuidados de saúde, aumentaram consideravelmente a esperança de vida e o
declínio da mortalidade infantil. Porém, nem todas as regiões do mundo
progrediram do mesmo modo. O Sudoeste Asiático foi o que melhor desempenho
demonstrou. A África sub-sahariana nem por isso. A falta de acesso a cuidados
básicos de saúde é uma das principais razões para o contínuo empobrecimento dos
países desta região geográfica. Na maior parte dos países pobres, as despesas
com a saúde não ultrapassam em média os 10 euros anuais por pessoa.
Por outro lado, e apesar de gastar-se aproximadamente 56 mil milhões de euros
anuais em pesquisa médica, menos de 10% é dirigida aos problemas de saúde que
afectam 90% da população mundial. Pneunomia, diarreia, tubercolose e malária -
doenças já praticamente erradicadas dos países ricos - são contempladas com
menos de 1% desse orçamento. Os resultados desta política são desastrosos: só a
malária mata duas pessoas a cada minuto, sobretudo crianças com menos de 5 anos
e mulheres grávidas. O acesso a medicamentos de base, vacinas e intervenções de
baixo custo - como camas de bebé desinfectadas à base de pesticida - poderiam
reduzir significativamente a taxa de mortalidade nos países mais pobres.
Mas a maior preocupação para os países sub-desenvolvidos, e mesmo para muitos
dos países em desenvolvimento, é a propagação do vírus da Sida. Cerca de 50
milhões de pessoas ficaram infectadas desde o início dos anos 70. Dezasseis
milhões morreram. Só em 1999, 5,6 milhões de pessoas foram contaminadas, metade
delas com menos de 25 anos. Dos cerca de 36 milhões de pessoas que vivem com
Sida, mais de 23 milhões habitam a África sub-sahariana. As consequências são
assustadoras: na Costa do Marfim morre diariamente um professor vitimado pela
doença, ao passo que em certas cidades da áfrica ocidental 40% das mulheres
grávidas são portadoras do HIV. A esperança média de vida no Botswana,
actualmente de 41 anos, poderia atingir os 70. As projecções governamentais no
Zimbabwe apontam para que o país gaste aproximadamente 60% do seu orçamento em
despesas de saúde no ano 2005, esforço ainda assim considerado insuficiente
para fazer face à progressão da doença. E a epidemia espalha-se pelo mundo. Na
Ásia, as infecções de HIV subiram 70% entre 1996 e 1998, sendo a Índia o país
mais afectado.
Desconfiança do poder político
Perante este cenário, qual é a opinião das pessoas acerca do modo como são
governadas? De acordo com a sondagem efectuada pela Gallup, má. No inquérito
perguntava-se às pessoas se achavam que o seu país era governado pela vontade
do povo, se consideravam as eleições livres e justas e de que forma
caracterizariam a governação: eficiente, burocrática, corrupta, justa ou
correspondente à vontade do povo. Mesmo tendo em consideração que o passado
cultural de um país modela a sua definição e medida de democracia, os
resultados revelaram-se, de certo modo, surpreendentes.
No conjunto, apenas um terço respondeu afirmativamente à questão se considerava
que o país era governado de acordo com a vontade do povo. Os valores daqueles
que acreditam nesta premissa não variam muito no que respeita aos grupos
demográficos, apesar de se obter um maior número de respostas positivas entre
os homens e nos estratos culturalmente mais elevados.
Mas uma comparação entre países e regiões geográficas mostra uma diferença de
percepção em relação a esta questão. Mais de 50% das pessoas inquiridas na
África Ocidental dizem que são governadas de acordo com a vontade do povo, em
contraste com apenas 12% dos habitantes dos países do leste da europa. Na
europa ocidental essa percentagem aumenta para 37,5%, resultado bastante
equivalente ao apurado na América do Norte (34,8%), ao passo que na América
Latina esse valor desce para 23,3% e para 30,9% no Sudoeste Asiático.
E se, globalmente, apenas um terço dos inquiridos afirma que o país é governado
de acordo com a vontade do povo, como vê o funcionamento das eleições e o
desempenho geral dos governos? E como classifica a actuação destes em áreas
como o ambiente e os direitos humanos? São algumas das questões sobre as quais
se debruçará o Dossier do número duplo de Agosto/Setembro, uma vez mais
contando com a opinião de convidados sobre as três questões que temos colocado
ao longo destes dois meses.
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