Algures, no primeiro dia do mês de Setembro do ano 2007.
Querida Alice,
Estávamos nós num tempo de há muito tempo, num tempo em que as aves falavam à
semelhança dos humanos seres. Mas, se quiséssemos estabelecer paralelos entre
dois mundos, difícil seria discernir se, nesse tempo, o dom da fala era
apanágio da humana condição, se as pontes de entendimento iriam do mundo dos
pássaros para o dos homens, se deste para o dos pássaros. Creio ser injusto,
por exemplo, que se diga da caturra que "só lhe faltava falar". Esse pássaro
encantador - que talvez te recordes de ter visto quando pequenina, na casa dos
teus pais - era bem mais eloquente que alguns humanos que foi dado ao teu avô
conhecer.
Nesse tempo, encerradas na clausura cinzenta das gaiolas de instrução, eram as
aves treinadas para perpetuar o método único, que consistia em trocar o belo
canto pela repetição de monótonas melopeias entoadas em escalas descendentes. O
borogóvio, "pássaro magro, de aspecto desagradável e com as penas todas pegadas
umas às outras"1, era quem melhor se adaptava ao método único. Pássaro
ridículo, "uma espécie de vassoura viva", no dizer de L. Carrol, aderia
incondicionalmente à regra do "sempre foi assim" e tinha por compinchas os
porquenãos.
Aos pássaros porquenãos competia vigiar o cumprimento das normas e rituais de
adestrar as jovens aves. Os porquenãos, que assim se chamavam por não saberem
explicar por que faziam o que faziam - era assim porque era assim... e pronto!
- dificilmente coexistiam com os pássaros-mestres propriamente ditos. Os
porquenãos eram aliados dos ratos e das víboras, animais do solo, invejosos e
maledicentes. Os pássaros-mestres dormitavam nas copas inacessíveis aos ratos
cavernosos e às víboras rastejantes.
À vista desarmada, não havia quem conseguisse distinguir uma espécie da outra.
Aos pássaros-mestres não restava alternativa senão a de piar em segredo,
aferrolhados nos galhos altos. Porque, se algum porquenão lograsse intuir o
perigo da diferença, nunca mais os pássaros-mestres teriam sossego.
Restar-lhes-ia mudar-se para uma outra gaiola dourada, de preferência bem
distante daquela. E havia ainda os porquenins, animais de outro reino, sempre
de acordo ora com uns ora com outros, conforme a ocasião.
Talvez se torne difícil para ti, Alice, que vives outros tempos, compreender
por que pássaros sem alma roubavam primaveras e impunham céus cinzentos a
muitas gerações de aves escolarizadas. Imagino difícil a tarefa de te explicar
a exclusão de aves especiais privadas da compreensão e do apoio de gaivotas
plurais. Prevejo impossível explicar-te o emudecer do canto dos bosques,
esmagado por letais silêncios e sombras. Mas falemos da viagem das gaivotas...
Eram aves migrantes e dissidentes estas gaivotas. Eram aves marginais à
História dos pássaros absorvidos por vidas que abdicam de viver. Nada tinham de
comum com as suas irmãs, que não arriscavam o voo que as afastasse da costa e
que, entre o nascimento e a morte, apenas conheciam o cheiro nauseabundo dos
esgotos e o frémito dos medos. Como já percebeste, as gaivotas da nossa
história não seguiam o rasto das traineiras nem debicavam peixe podre.
Durante a viagem, as gaivotas tiveram encontros felizes. Mal começaram a
afastar-se da costa, encontraram um corvo marinho. Voava alto e vertical, e nem
deu pela presença das gaivotas. Avistou um peixe nas águas claras e mergulhou
vertiginosamente, para logo emergir saciado e de penas secas e limpas. Eram as
penas negras, como as que vestem os pássaros que conheceram as longas noites
sem voo e a arte de peregrinar.
O corvo marinho aceitou o convite das gaivotas e partiu com elas à aventura. E,
mais adiante, as gaivotas avistaram guarda-rios que procriavam no recôndito de
túneis escavados nas barreiras que bordejavam os rios, numa umbilical ligação
com as águas.
Verdade seja dita: não as guardavam, por correrem as águas sempre por outro
lado, ou porque a ignorância dos homens as convertessem em charcos estagnados.
Os guarda-rios já quase tinham esquecido os remotos ecos do fresco gargalhar de
jovens almas refrescando-se em jogos de água e ilusão. Mas chegaram as gaivotas
a essa terra entre dois rios e logo os trinados de pássaros livres regressaram
às suas margens. Porque, entre as demais, uma gaivota sugeria aos jovens
aprendizes de voar o voar mais longe nas asas do sonho.
Sei que hás-de gostar dessa história. Depois ta contarei.
Fica em paz e com o amor do teu avô José.
1 "Alice no País das Maravilhas"
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