Numa equipa constituída necessariamente por pessoas incertas,
descontínuas, frágeis, inseguras, incompletas, a compreensão filosófica do que
se faz transmite confiança, coerência, inteligência crítica.
Entusiástico espectador do futebol, estou entre aqueles que apreciaram com
agrado o futebol do Sporting C.P., na temporada há pouca finda. E daí poder
afirmar, neste momento, que as qualidades notáveis (futebolisticamente falando)
do André Cruz, do Rui Jorge, do João Pinto e do Mário Jardel foram alguns dos
alicerces onde assentaram as vitórias sportinguistas. E o ruído e a cor da
falange de apoio, onde se agrupa um número incontável de jovens? E não sobram
as razões para referir os departamento médico liderado pelo doutor Gomes
Pereira? E não são os dirigentes pessoas de elevada instrução e com vontade de
aplicá-la para uma boa gestão do clube? E não são as relações entre jogadores
as mais estreitas possível e pautadas pela camaradagem mais sólida? E não é o
treinador principal um gentleman que parece saber tanto de futebol como
do universo cultural onde se movimenta?
Francis Crick, prémio Nobel da Medicina por ter descoberto, com Watson, a
estrutura ADN, publicou, há quatro anos, um livro com o seguinte título: Uma
hipótese espantosa - o estudo científico da alma, salientando que o
progresso do conhecimento neuro-biológico levar-nos-á, mais tarde ou mais cedo,
à explicação da própria alma. E sublinha que explicar a alma equivale a
compreender em boa parte a conduta humana. O sentencioso e engenhoso Crick não
tem dúvidas: o corpo é humano porque se exprime através de um espírito; e pouco
sabemos do espírito humano, lamentavelmente! Tudo isto para dizer que as
vitórias do Sporting C.P. assentam também num estado de alma... de que não se
fala porque se desconhece! Não se nega a importância do biológico nas
performances desportivas. Afirma-se que será reducionista um treino que não
inclua as dimensões psicológica e espiritual.
Todos já lemos (ou já escutamos repetida por outros autores) a drástica
interrogação que abre a primeira grande obra filosófica de Maurice Blondel, L'action:
"Sim ou Não? Tem a vida humana sentido e o ser humano um destino?" Este livro é
o texto integral da tese que lhe ganhou o doutoramento na Sorbonne, corria o
ano de 1893. Sete páginas adiante, escreve: "O problema é inevitável e em cada
uma das suas acções o ser humano tem de resolvê-lo - o que eu faço tem sentido
e insere-se no meu próprio destino? Em tudo o que se faz a coragem de actuar
está na razão desta interrogação inicial." Por outras palavras: há uma
filosofia da acção que funciona como poderoso estímulo, em tudo aquilo que
fazemos. Blondel, encontra sob as dimensões empírica e psicológica, a
explicação primeira das nossas vitórias (ou derrotas) no significado que
atribuímos às condutas que as constituem. A preparação no desporto altamente
competitivo, segundo os manuais mais folheados, abrange as vertentes física,
técnica, tática e psicológica. De filosofia nem ao leve se toca. Ora, quando
não se abre o diálogo com a filosofia, tudo se compreende, excepto o essencial:
o significado humano daquilo que se faz.
Uma das heranças mais perniciosas da era cartesiana-newtoniana-
iluminista-positivista é a de departamentalizar para organizar e dividir para
compreender. O nosso povo fez a síntese adequada: cada macaco no seu galho. No
entanto, a realidade é integrada, sistémica, holística, não cabe em sistemas
fechados, mas em sistemas abertos e, por consequência, emergentes. A realidade,
que é a competição desportiva, não pode continuar a considerar-se como um todo
e, epistemologicamente, fragmentado; mas como um todo integrado, em construção.
Não faço a mínima ideia se o treinador do Sporting C.P. tem em mente esta
problemática. Contudo, numa equipa constituída necessariamente por pessoas
incertas, descontínuas, frágeis, inseguras, incompletas, a compreensão
filosófica do que se faz transmite confiança, coerência, inteligência crítica.
De qualquer forma, se o Sporting C.P. é campeão, algo teve que os outros não
apresentaram: os melhores jogadores, a melhor equipa, a melhor organização
(onde incluo a gestão financeira do clube). Só não sei se todos estes êxitos se
fundamentaram também no diálogo entre a palavra e o silêncio, entre a acção e a
reflexão, entre a prática e a teoria, entre o presente e o futuro, entre o
momento e a eternidade. Para que da veemência do entusiasmo, do orgulho e da
paixão possa despontar algum senso crítico e o sentido do próprio desporto!
Habermas já sublinhou que o tecnicismo chega, hoje, a todos os aspectos da vida
social. Tudo se explica pela técnica. Há uma repressão, exercida pela técnica,
sobre as explicações da ordem moral e política. E há interrogações deste tipo a
levantar, nas vitória e nas derrotas, no Desporto. A eficácia não pode ser o
seu objectivo primordial.
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