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Não é necessário formar professores de português !...

(uma história de não se saber o que é cagaço)

Tome-se uma mulher (ou um homem).
De preferência que saiba ler um pouco.
Sendo humano, também dá jeito.
Fora de época, use-se o robot.
Deve chegar para se ser professor
de Língua Portuguesa.
Mas não de Língua Materna, com tudo
o que isso implica.

Escolha-se um dos novos manuais escolares concebidos para os alunos do 7º ano de escolaridade, em 2002/2003. Está recheado de apoios à docência.
O Livro do Professor ("Manual do aluno + Banda suplementar = livro do professor."). Em cada página, uma banda lateral com informações só para o docente. Aí encontrará o nosso humano todas as respostas: qual o narrador do texto (pág. 27), qual o percurso do cavaleiro (pág. 61), o que significa o tracejado num balão de BD (pág. 107), algumas regras de uso da maiúscula inicial (pág.111); qual o significado de "gira", de "cagaço", de "desandou" (pág. 155). Para além destas inúmeras e "preciosas" informações, há também uma infinidade de sugestões de trabalho a propósito de cada texto seleccionado, que a mulherzinha/homenzinho utilizará, com uma crença absoluta.
Mas há mais condimentos neste "conjunto integrado de recursos didácticos para uma prática lectiva apoiada": 1 cassete vídeo, 1 CD áudio (poesia, conto tradicional, noticiários "reais", entrevistas e canções), 12 transparências, 1 caderno de apoio ao professor (competências essenciais no currículo do 3º ciclo, guião de exploração das transparências levado ao mais ínfimo pormenor, sugestões de portais da internet, guião de exploração do CD áudio, outros textos com propostas de abordagem e a autocorrecção das fichas de trabalho do caderno de actividades do aluno!), 1 plano anual desdobrável, 1 dossier do professor (agenda/plano, dossier de grelhas de avaliação e de registo para 5 turmas, 48 páginas de guia prático para a reorganização curricular e 32 de propostas para o Estudo Acompanhado (Como é possível ousar prever as necessidades a nível do Estudo Acompanhado?)) e ainda 1 caderno de actividades "concebido a pensar no aluno", mas que "faz também parte integrante dos recursos ao dispor do Professor".
Perdoarão os leitores a estafa da enumeração. De que outra forma poderia argumentar não ser necessária a formação de professores de Língua Portuguesa, inicial ou contínua? Está tudo lá!!!
Que maravilha!? Que engano tão profundo!...
Enormes dúvidas nos desassossegam - independentemente das questões científicas (a chegada recente do manual ainda não permitiu essa análise) e porque pode ser este, ou qualquer outro.
A primeira é: que ideia terão autores e editoras dos professores de Língua Materna deste país? acreditarão que não sabem o que é um narrador, uma BD, ou o que é "cagaço"?! Que não sabem explorar ou conceber um acetato? Que não usam a cabeça, não pensam, nem criam?
Outra é sobre os docentes: querem ser comandados por estes "industriais" do ensino? Deixar de ser trabalhadores intelectuais e iniciar uma vida de operariado, condenada à cinzenta solidão?
A última dúvida é sobre o que vai acontecer à educação neste país (quem a não tem?).
É inegável a primazia que foi dada oficialmente ao tratamento da Língua Materna. Não à disciplina em si, mas a uma perspectiva transversal que faz emergir a velha máxima segundo a qual todos somos professores de Português.
Porém qualquer Projecto Curricular terá que ser criado em função de uma realidade muito concreta, de objectivos demasiado específicos para poderem ser previstos por um manual escolar. A flexibilização curricular implica:
- a articulação e a reformulação de programas e a sua adaptação à realidade de cada comunidade educativa;
- a renovação de estratégias que proporcionem o gosto pela investigação (será saudável ouvir noticiários na rádio e na televisão - e ler jornais - com os alunos e não em CDs);
- o acesso às novas tecnologias de informação (docentes e alunos podem procurar e seleccionar em CD Rom, na net);
- a máxima rentabilização de recursos materiais e humanos (em cada momento, na escola);
- a capacidade de integrar a diversidade de alunos (não há manual que o preveja!);
- o melhoramento significativo das relações afectivas na comunidade educativa;
- uma avaliação formativa permanente sempre conducente ao sucesso educativo.
E todos estes vectores comportam o exercício da cidadania, em projectos que são, afinal, o único modo de vida plausível para um ser humano - tendo sempre a Língua Materna como pontos de partida e de chegada. Formação Cívica, Área de Projecto e Estudo Acompanhado, serão óptimos recursos, se forem assumidos (em função dos percursos e das necessidades das turmas) pelos Conselhos de Turma e não como disciplinas em que se usarão manuais, ou seus satélites, "videntes" de uma realidade que não conhecem.
A Reorganização Curricular não poderá ser implementada com este estatuto dos livros escolares. Que papel terá a comunidade educativa? Um desempenho "acagaçado?" Não acredito.


  
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Edição:

N.º 113
Ano 11, Junho 2002

Autoria:

Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário
Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário

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