Uma associação de solidariedade social acaba de dar à estampa
uma brochura entitulada "Os direitos humanos das pessoas com deficiência". Daqui
saúdo a meritória iniciativa. Pena é que o título escolhido para esta publicação
não esteja à altura das nobres intenções dos seus promotores. Pois a expressão
"pessoas com deficiência" que dela consta só serve para obscurecer a natureza
das necessidades e direitos especiais das pessoas de quem fala, prejudicando
o alcance e a eficácia da campanha de sensibilização que os promotores da referida
brochura decidiram lançar ao publicá-la.
OFNIs constitucionalizados
É verdade que não se lhes pode assacar responsabilidades na
criação deste OFNI, apenas na sua imerecida propagação. Poderão até alegar como
atenuante o facto de se terem inspirado nas formulações (ainda mais deficientes)
adoptadas recentemente pela Constituição da República Portuguesa. A epígrafe
do artigo 71 da Constituição era, desde 1976, "Deficientes". O seus dois números
tinham a redacção seguinte: "1.Os cidadãos física ou mentalmente deficientes
gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição,
com ressalva do exercício ou do cumprimento daqueles para os quais se encontrem
incapacitados. 2. O Estado obriga-se a realizar uma política nacional de prevenção
e tratamento, reabilitação e integração dos deficientes [sic] e de apoio às
suas famílias, a desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto
aos deveres de respeito e solidariedade para com eles e a assumir o encargo
da efectiva realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos e deveres
dos pais ou tutores". A revisão constitiucional (RC) de 1989, aditou um terceiro
enunciado: 3." O Estado apoia as associações de deficientes [sic]". A RC de
1997 alterou a epígrafe do artigo 71 para "Cidadãos portadores de deficiência",
expressão que passou também a figurar nos seus três numeros onde antes se lia
"cidadãos física e mentalmente deficientes" ou simplesmente "os deficientes".
Oxímoros
Sendo "deficiente" um ADJECTIVO (não um substantivo) que significa
"falho, falto, imperfeito" e se diz de coisas, em particular de números (não
de pessoas), foi bom que desaparecesse da epígrafe e dos números 2 e 3 do artigo
71. Quanto ao mais, a emenda foi pior que o soneto. O Grande Dicionário da Língua
Portuguesa caracteriza (e bem) a palavra "deficiência" como um SUBSTANTIVO,
não um adjectivo, aplicável a coisas, não a pessoas: "(do Latim, deficientia).
Falta; Imperfeição || Quebra; falha no que se tinha somado ou orçado".
Se insistirmos, portanto, em forçar este substantivo a fazer ofício de adjectivo
para falar de pessoas, criamos automáticamente um oxímoro ainda mais odioso
do que aqueles que parecem ser produzidos expressamente para tentar desmantelar
a nossa capacidade de juízo crítico. Lembro, a título de exemplo, apenas alguns
dos mais recentes, como "os bombardeamentos cirúrgicos" (para designar aqueles
bombardeamentos que conseguem acertar numa área não superior a metade de um
campo de futebol), "os danos colaterais" (para designar as vítimas inocentes
de tais bombardeamentos) ou "as salas de injecção assistida" (para designar
a tentativa reiterada de levar o Estado a apoiar em surdina os narcotraficantes
com o dinheiro dos contribuintes, a pretexto, pois claro, de ajudar as vítimas
do narcotráfico).
Dever de respeito e solidariedade
Admito que os oxímoros "pessoas com deficiência" e "cidadãos
portadores de deficiência" possam ser de alguma utilidade para falarmos com
punhos de renda de assassinos compulsivos, ditadores sanguinários ao estilo
de Hitler, Estaline, Sukarno, Amin Dada, ou Pol Pot, torturadores profissionais
e gente desse quilate. Mas dizer o mesmo de pessoas com limitações específicas
- quer sejam limitações de natureza motora (e.g. paralisia cerebral, mutilação
dos membros), sensorial (e.g. cegueira ou surdez) ou mental (e.g. trissomia
21, autismo) - que as incapacitam para o exercício de certas actividades e lhes
conferem o direito a certos apoios especiais, será tudo o que se quiser menos
"desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de
respeito e solidariedade para com elas".
Não temos outro remédio senão esperar até à próxima revisão constitucional para
requerer aos deputados que façam desaparecer estas infamantes expressões de
Brutuguês do texto constitucional. Mas não temos que ficar parados até lá. Podemos
começar por aboli-las do nosso próprio vocabulário, substituindo-as, por exemplo,
por "cidadãos portadores de direitos especiais", uma expressão criada no Brasil
por Frei Betto.
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