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Rede de bibliotecas públicas e bibliotecas escolares: Sobram as intenções, faltam os meios

Portugal tem um dos mais baixos índices de leitura dos países da OCDE. De acordo com números divulgados em 1999 pelo Instituto Nacional de Estatística, apenas 30% dos inquiridos afirmava ter lido um livro ao longo esse ano. Deste universo, 60% eram mulheres. Quanto à leitura de publicações periódicas - jornais e revistas - o panorama era mais favorável, já que mais de metade da população lia regularmente jornais (58%) e revistas (54%). Do total de leitores de jornais 58% eram homens, ao passo que nas revistas o público era, em igual proporção, maioritariamente feminino.

Muitas causas podiam ser apontadas para este quadro desanimador, mas uma das principais dever-se-á seguramente ao facto de as bibliotecas - locais por excelência para o desenvolvimento de hábitos de leitura - desde sempre terem sido consideradas como locais herméticos, de acesso restrito, destinadas essencialmente aos "letrados". Uma suposição que talvez tivesse alguma razão de ser até há alguns anos, altura em que as bibliotecas públicas existentes eram instituições centenárias, onde os serviços de livre acesso e o recurso às novas tecnologias não estavam ainda generalizados, não reflectindo, por isso, a procura e as necessidades de leitura e de informação do público em geral.
Para tentar contrariar esta tendência surge, em 1987, o projecto de criação de uma Rede Nacional de Bibliotecas Públicas, cujo objectivo passa por instalar e desenvolver bibliotecas municipais em cada um dos 278 concelhos do país, através de contratos-programa estabelecidos entre o governo e as autarquias, com o apoio técnico e financeiro do Ministério da Cultura. Desde então, o número de utentes das bibliotecas públicas não parou de crescer, passando dos cerca de 2 milhões em 1990 para os 6,5 milhões em 1998. Em Fevereiro de 2001 eram já 209 os municípios do continente que integravam a Rede de Leitura Pública, no âmbito da qual tinham sido construídas, até à altura, 89 novas bibliotecas, encontrando-se as restantes em fase de construção.
As bibliotecas que integram esta rede são dimensionadas em função do número de habitantes de cada concelho - até 20 mil, entre 20 e 50 mil e mais de 50 mil. No entanto, cidades como o Porto ou Vila Nova de Gaia, que no conjunto albergam mais de meio milhão de habitantes, dispõem de apenas três bibliotecas públicas. Para dar resposta a estas situações de excepção está prevista a aplicação do projecto Bibliopolis, nos concelhos de Braga, Coimbra, Évora, Lisboa e Porto, destinado a apoiar as bibliotecas dos grandes centros urbanos nos quais já existam outras estruturas complementares, nomeadamente bibliotecas universitárias, que possam funcionar como parceiros de uma rede integrada. Porém, até agora não passa de um projecto na gaveta.
Então, porque não levar a leitura através da instalação de pequenos pontos de leitura espalhados pelas cidades de maior dimensão, recuperando uma ideia nascida com a República - as chamadas "bibliotecas populares"? No caso do Porto, o director da Biblioteca Pública Municipal (BPMP) da cidade, Sílvio Costa, explica que, na sua opinião, não faz sentido criar mais pólos de leitura mas antes entrar em parceria com a rede de bibliotecas universitárias, escolares e de instituições privadas e de utilidade pública de forma a criar uma efectiva rede de leitura concelhia - que, na prática, acaba por servir as populações vizinhas e funcionar numa lógica metropolitana.
Aliás, na opinião de Sílvio Costa, o desenvolvimento de uma rede de leitura pública deveria, antes de mais, enfatizar o próprio conceito de "rede", principiando por iniciativas simples. mas com "grande impacto na vida quotidiana dos cidadãos", como é o exemplo da criação de um cartão único de leitor, permitindo ao utente o acesso comum a um conjunto de bibliotecas, que deveria, eventualmente, alargar-se a todo o território nacional.
"As bibliotecas têm de oferecer, acima de tudo, serviços muito concretos e de proximidade", refere o director da BPMP, admitindo, neste capítulo, que as bibliotecas "adormeceram embaladas no conceito tradicional de leitor". É nessa medida que urge responder a uma categoria de leitores muito concreta - os idosos, os habitantes dos bairros sociais ou as crianças, por exemplo -, que habitualmente estão arredadas dos seus serviços. "Se as bibliotecas não disponibilizarem serviços vocacionados para chegar a estes públicos não estarão a cumprir totalmente o seu desígnio".

Falta de pessoal qualificado

Mas não é apenas este problema de ordem organizacional que afecta o desenvolvimento coerente de uma Rede de Bibliotecas Públicas no nosso país. A inexistência de uma obrigatoriedade legal de catalogação na fonte, que permitiria às bibliotecas e centros de documentação procederem a uma catalogação atempada do seu espólio, faz com que, na maioria dos casos, uma publicação leve quase um ano a estar disponível para consulta. "Não sei se se resolveria esse problema obrigando as editoras a fazê-lo, porque também não funciona com a lei do depósito legal", diz Sílvio Costa. A responsabilidade por esse controlo, lembra, cabe à Biblioteca Nacional (BN), mas os meios de que dispõe para o fazer são "escassos".
Por outro lado, é cada vez mais urgente implementar um plano nacional de microfilmagem - do qual se vem falando desde os anos 60 - na medida em que, diariamente, "se perde uma boa parte do suporte bibliográfico impresso", nomeadamente jornais e outras publicações periódicas. "Em termos de produção digital, então, estamos completamente a descoberto. Tudo o que se publicou nos últimos quinze anos vai irremediavelmente perder-se" diz Sílvio Costa.
Em termos de meios humanos, o problema mais grave com que se confrontam as bibliotecas, centros de documentação e arquivos em Portugal é a escassez de profissionais técnicos intermédios - oficialmente designados por Técnicos Profissionais de Biblioteca e de Documentação - e de técnicos especializados em áreas muito específicas como são aquelas que decorrem da generalização das tecnologias da informação ou das necessidades de restauro e de conservação preventiva.
Para procurar descobrir as actuais necessidades de formação intermédia, a Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (BAD) efectuou um inquérito, em Julho de 1999, através do qual concluiu que, num universo de 260 bibliotecas, 51 centros de documentação e 88 arquivos existentes no país, faltariam qualquer coisa como 513 técnicos de Bibliotecas e 115 técnicos de Arquivo. Em Fevereiro de 2001, os números foram actualizados: a médio prazo seriam necessários cerca de 3 mil técnicos de biblioteca e documentação e algumas centenas de técnicos de arquivo.
Até ao início dos anos 90, foi a BAD quem garantiu a formação inicial de todos os técnicos em funções nas bibliotecas e centros de documentação portugueses, sucessivamente autorizada pelo governo através de despachos ministeriais, renovados de cinco em cinco anos, substituindo-se ao Estado, na prática, nessa responsabilidade.
Porém, o panorama agravou-se em 1998, quando o despacho legislativo que autorizava a BAD a realizar essa formação caducou e não foi renovado. "Para espanto nosso, e apesar de todas as nossas diligências, a situação só se resolveu agora, em Fevereiro último", afirma Jorge Costa, presidente da delegação regional do Norte da BAD. Para dar resposta às necessidades de pessoal que entretanto foram surgindo, o Estado foi recorrendo a mão-de-obra indiferenciada. "Não há ninguém que saiba explicar a razão para este adiamento, que não se deveu certamente à falta de empenho da BAD". Neste momento estão a abrir novos cursos e a lista de espera atinge já cerca de 600 candidatos. "O nosso problema agora irá ser seleccionar os candidatos, porque cada curso não admite mais do que 20 ou 30 formandos".
De acordo com a legislação comunitária, o sistema educativo português deveria integrar o curso de técnico bibliotecário e arquivista no curriculo do ensino secundário, tal como aconteceu no início dos anos 90 em três escolas secundárias de Lisboa, Coimbra e Porto, que, por falta de procura (na maioria dos casos os alunos têm uma impressão negativa das bibliotecas e muito dificilmente as encaram como uma saída profissional), acabaram por ser extintos em meados da década.
"Na minha opinião foi uma decisão errada", diz Jorge Costa, "já que a diminuição dessa oferta de formação está a repercutir-se negativamente" no funcionamento das bibliotecas e centros de documentação. A proposta de revisão para o ensino secundário proposta pelo governo socialista previa o retomar deste oferta de formação, não se sabendo se a decisão de a suspender poderá pôr em cheque esta intenção. Tanto mais não fará sentido, quando é o próprio Ministério da Educação um dos principais atingidos pela sua medida, vendo-se actualmente a braços com falta de técnicos intermédios que apoiem o funcionamento das bibliotecas escolares.

Bibliotecas escolares necessitam de mais meios

Para fazer face às necessidades de técnicos de nível intermédio, o ME optou por garantir formação especializada a funcionários não docentes - aqueles que em geral possuem habilitações académicas mais elevadas e sentem alguma afinidade por esta área - em vez de contratar técnicos do exterior. A responsabilidade pela organização e gestão das BE foi, por sua vez, atribuída aos próprios docentes, designados professores bibliotecários, que recebem uma formação intensiva mínima de 475 horas e são destacados a tempo inteiro para exercerem esta função.
Jorge Mateus é um dos três docentes que ficou encarregue de coordenar a criação da nova biblioteca da Escola Secundária Carolina Michaelis, no Porto, que será inaugurada já no próximo ano lectivo. Apesar de sentir que a formação ministrada lhe permite dominar minimamente as tarefas inerentes ao cargo, "muito ficou por fazer", diz. "É impossível atingir um nível de aprofundamento de conhecimentos num período de tempo tão curto. O sentimento que ficou foi o da necessidade de uma formação mais completa", refere Jorge Mateus. Para isso, ele e o grupo de colegas que frequentaram aquela acção de formação apresentaram uma proposta à entidade formadora no sentido de realizar-se uma segunda fase que se debruçe sobre aspectos "eminentemente técnicos", como é o caso da indexação e catalogação do espólio bibliográfico.
Para proceder à organização da biblioteca, a escola recebeu uma verba distribuída em 3 tranches - uma para a construção, outra para a aquisição de fundo documental (cerca de 2 mil contos) e outra para equipamento (3 mil contos) -, tendo a escola, de acordo com o contrato-programa estabelecido com o ME, de assegurar o financiamento restante. Além disso, será a escola, a partir do seu próprio orçamento, a ter de garantir os meios para a manutenção, que Jorge Mateus estima elevarem-se a cerca de 2500 euros anuais. "Esperemos que seja possível garantir esse financiamento, já que parte do ME não está prevista qualquer verba".
De forma a racionalizar os custos e potenciar as verbas disponíveis, a ideia deste responsável é a de articular esta biblioteca com outras que estejam inseridas na mesma área geográfica, no sentido de realizar aquilo que, afinal, é a essência da Rede de Bibliotecas Escolares (RBE): a "partilha e a conjugação de esforços". Numa perspectiva de longo prazo, o objectivo passa por pensar na oferta de serviços que ultrapasse o âmbito da comunidade educativa, tentando abri-la também à comunidade envolvente.
No caso das escolas do 1º ciclo, o professor é contemplado com uma redução de horário que, no entanto, tem vindo a ser diminuída gradualmente e torna impossível prestar um serviço que corresponda às ambições do projecto. "Um dos problemas que se coloca actualmente a estas estruturas deve-se ao facto de a rede estar a montar as bibliotecas mas não estar a pensar na sua manutenção. E as escolas não têm dotação orçamental própria para as manter", refere Ana Chaves, técnica superior de Ciências Documentais a exercer funções na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto, a quem cabe a ligação e o apoio às escolas do 1º ciclo envolvidas na RBE concelhia. "É um projecto com pernas para andar, mas é preciso pensar nos custos de manutenção e criar mecanismos para os garantir".
O Programa RBE foi iniciado no ano lectivo de 1996/97 e surgiu na sequência da publicação do relatório "Lançar a Rede de Bibliotecas Escolares". Este programa, a quem compete instalar, de modo faseado, uma rede de bibliotecas escolares, desenvolve a sua iniciativa através de duas modalidades de intervenção, concretizadas através do lançamento de candidaturas concelhias e nacionais.
A primeira, e mais solicitada, concretiza-se através da apresentação pelas escolas de um plano para o desenvolvimento da respectiva Biblioteca Escolar/Centro de Recursos Educativos (BE/CRE), contando, para o efeito com o apoio das Direcções Regionais de Educação, das autarquias e das Bibliotecas Públicas, bem como do Gabinete da Rede de Bibliotecas Escolares. O Ministério da Educação, através das Direcções Regionais, celebra com as escolas e as autarquias um acordo de cooperação que formaliza o envolvimento das partes na concretização da BE/CRE. A Candidatura Nacional, por sua vez, dirige-se às escolas dos vários níveis de ensino que, fora das áreas geográficas abrangidas pelas candidaturas concelhias, desenvolvem, de acordo com o ME, "experiências significativas em matéria de organização, gestão e dinamização de BE/CRE".
De acordo com dados fornecidos pelo Departamento de Avaliação Prospectiva e Planeamento (DAPP) do Ministério da Educação, referentes a 2000/2001, existem 571 escolas aderentes à RBE concelhias, das quais 285 são do 1º ciclo (estas com o apoio das autarquias), 152 do 2º e 3º ciclos, 114 do ensino secundário e 20 escolas Básicas Integradas.


  
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Edição:

N.º 112
Ano 11, Maio 2002

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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