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Transversalizando...
A vinda a público de algumas questões inseridas num teste de um curso de complemento de formação para professores suscitam o debate sobre o "eduquês".

"Causalizando os respectivos objectivantes, o maior ou menor sucesso intelectivo-educacional materializa-se em facultar ao Homem / Aluno uma plena e interactiva adaptação ao meio, preconizando a sua vivência numa sociedade virtual que ainda não existe. Sufraga ou impugna ? Justifique".
O teste andou pelos jornais. Vi-o numa coluna de opinião da "Visão", justamente intitulada "Paixão pela Educação", onde, para além da questão já transcrita, tentei adivinhar o que me aconteceria se tivesse que tecer "um comentário sinóptico (corroborante ou repudiante), ancorado em dimensão axiológica e argumentos, empíricos ou especulativos, minimamente válidos". Esta amostra de exibicionismo saloio e inculto aconteceu numa prova de avaliação de um curso de complemento de formação de uma escola superior privada. O que para o caso pouco importa. Escarafunchando um bocadinho, é possível, certamente, encontrar coisas como estas quer em escolas superiores e faculdades públicas quer nos mais variados e diversos tipos de disciplinas que por lá abundam. Mas não é isso que me traz aqui.
São outras as minhas preocupações. Começaram quando reparei que aquele teste inominável se tornara o pretexto para que em alguns artigos de opinião, mais uma vez, alguns articulistas pudessem atribuir às Ciências da Educação os males da escola e do ensino em Portugal. Ali estava a prova da existência do eduquês. Não era a prova que faltava, mas mesmo assim, convenhamos, era uma prova exemplar.
Li esses artigos sentindo que através da verdade me estavam a tentar enganar. E de facto assim era. Tentava-se fazer passar a ideia que aquele teste identificava todos os que recusam entender a escola como um espaço de adestramento humano e cultural, caracterizando-os como uns seres estranhos, egocêntricos, fechados nos seus dogmas e no seu palavreado. Incapazes de enfrentar a realidade. Incapazes de compreender que foi a massificação da Escola e o igualitarismo ingénuo dos pedagogos que a degradou.
Mas também não é isso que me interessa discutir. O que me interessa saber é porque é que aqueles articulistas nunca trouxeram a público outras questões pomposas e ignorantes que inundam diariamente os testes, os exames e o trabalho escolar dos alunos. Questões que só fazem sentido dentro das escolas e no linguarajar específico que aí se alimenta.
É isso que nos distingue. Para mim, o sofrimento dos professores daquele curso de complemento de formação não é mais do que a expressão do sofrimento de todos os alunos que, quotidianamente, enfrentam nas escolas momentos de trabalho e de exigências absurdos. Se não faz sentido que uma escola de formação exija aos seus alunos que tracem, "sem intuitos exaustivos", a "noção génese, características, mudança, hierarquia, taxinomia, teleologia, filosofia, peregrinação, utopia, potestade e heurística axiológicas", a partir do "acervo "mapa-múndi" noosférico (habitat cultural de valores)", também não faz sentido que uma criança tenha, supostamente para aprender a ler, de decifrar que "A Belita bateu na tia" ou que "O Óscar viu os ovos e abriu os olhos". E como é que alguém com 16 anos, num 12º ano qualquer, se relaciona com um texto onde, para se compreender que a obra de Torga retrata a "revolta da inocência humana contra a divindade transcendente", deverá ser capaz de interpretar que "o desespero religioso leva Torga a um constante monólogo verdadeiramento inquieto com Deus. (...) Precisa do Deus imanente, próximo e revelado, mas as suas conclusões racionalistas tornam-no inatingível. Sophia afirma "que o divino que aparece na obra de Torga não mora na imanência, à qual se opõe, mas sim na transcendência" ?
A ferida é mais funda do que aquilo que um teste parolo revela e espanta-me que sejam os mesmos que costumam falar da falta de exigência e de rigor das escolas de hoje, a mostrar-se tão ofendidos com algo que têm vindo publicamente a acalentar.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 112
Ano 11, Maio 2002

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto

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