Tenho aprendido, nestes onze últimos anos, a prestar mais
atenção às tecnologias educacionais existentes fora do espaçotempo escolar.
Às de dentro, não dou tanta atenção, não por desimportância, mas porque são
cercadas de uma certa obviedade de objetivos. Quanto às de fora, e vou-me prender,
nesta pequena reflexão, ao rádio - o maior sucesso para os que, como eu, nasceram
no ano da chegada da televisão ao Brasil - e à própria televisão - com o "moderno"
periférico videocassete - que faz com que os miúdos em torno dos 10 anos muitas
vezes nem saibam o que é o rádio.
Vou ilustrar brevemente o motivo da minha atenção. Foi quando
Pedro tinha um pouquinho menos de 2 anos. Calmo por natureza, estava ainda mais
quieto por causa de uma ligeira elevação de temperatura. Sentado ao meu colo,
assistíamos - eu, pela centésima vez, e ele pelo o dobro ou o triplo disso -
a um desenho intitulado Bernardo e Bianca. Nem vou discorrer sobre a infantil
história, que ela não é essencial ao episódio, mas sim descrever uma pequena
passagem: havia um albatroz, de cujo nome não me recordo, que era um avião,
mas que, por ser o que era, tinha uma perícia muito maior na decolagem que na
aterrissagem.
Pedro e eu assistíamos a esta exata passagem quando ouço meu filhote a falar:
Perigo, perigo, perigo...
Por seu estado febril, eu estava muito atento a ele. Quando ia perguntar-lhe
o significado daquela frase tão enfática, ouço, vindo da tevê: - Perigo, perigo,
perigo...
A partir daí, passei a observar que Pedrinho, de tanto ver algumas fitas, já
as tinha de memória, e, eventualmente, quando lhe aprouvesse, associava as imagens
e o texto e antecipava algumas falas de personagens. Esta primeira observação
ficou assim meio que jogada, esquecida; no entanto, como esse pequeno jogo de
Pedrinho se repetisse a partir de desenhos animados diferentes, veio-me à lembrança
que eu não conseguiria reproduzir diálogos ou narrações do meu herói favorito,
cuja história foi novelizada pela Rádio Nacional: Jerônimo, o herói do sertão,
que, com o Moleque Saci para ajudar, como dizia a única repetição diária de
suas apresentações, a música-tema, era um valente e genuíno herói brasileiro,
posteriormente substituído pelos super-heróis americanos na tevê.
Vejamos alguns pontos: para que eu soubesse a história do meu herói, tinha que,
diariamente, de segunda a sexta, ficar a ouvir com toda a atenção os capítulos
da história que, completa, durava de três a quatro semanas. Muitas vezes, fatos
importantes acontecidos no início da história repercutiam no meio ou no seu
final, e eu tinha de guardá-los na memória, já que o recurso do gravador não
era usual na época e não estava ao meu alcance. Já com Pedro era diferente:
além da imagem, ele poderia, se quisesse - e sempre queria -, repetir a história
de seus heróis muitas vezes, a ponto de memorizar, pela repetição, toda a história,
ajudando-o na compreensão dela, o que eu percebia quando, ao trocarmos idéias
sobre este ou aquele desenho animado, ele organizava seus argumentos com muita
propriedade.
Esta narrativa me remete à escola, seus processos de aprendizagemensino1 cotidianos
e à utilização, ou não, de recursos tecnológicos. O meu herói, e a minha escola,
são dos anos 60; os do Pedrinho são dos anos 90. O que percebo é que os heróis,
mais do que as escolas, têm acompanhado os novos tempos tecnológicos; melhor
dizendo, muitas das escolas que conheço entraram no século XXI com a estrutura
pedagógica das novelas dos anos 60, não oportunizando a seus habitantes formas
mais interessantes de aprendizagemensino. Muitas vezes, as escolas têm um bom
equipamento tecnológico, mas que são utilizados como versões mais modernas das
mesmas novelas antigas, e não como formas efetivamente novas de tessitura de
conhecimentos.
Esta constatação me leva a crer que os estudos que trazem discursos de "modernização
dos cursos de formação de professores" ainda não têm conseguido passar que essa
modernização está mais na concepção de conhecimento do que no aparato tecnológico
que se possa utilizar. Muitos heróis de hoje não mais expressam a consagrada
luta do bem contra o mal, trazendo, com isso, uma nova concepção de heroicidade.
No entanto, a grande maioria das escolas, se não todas, ainda entendem o conhecimento
como verdades científicas que têm de ser apreendidas pelos alunos para que eles
tenham sucesso.
Culpa das escolas e seus dirigentes? Culpa dos professores, que têm medo de
serem substituídos pela tecnologia? Culpa dos alunos, que trazem o conservadorismo
da instituição familiar?
Não sei se devemos procurar culpados, mas sinto que devemos pensar com muito
cuidado no projeto mundial que está colocado e que tem norteado as ações governamentais
voltadas para a educação, buscando outras possibilidades para as práticas educativas.
1 Tenho, como outros autores e estudiosos do cotidiano, neologizado
algumas palavras pelo processo de justaposição sem hífen, na medida em que me
aproximo mais do significado que quero passar.
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