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Ensino Secundário para todos? Talves... mas a cada qual o seu

O Ensino Secundário é palco de várias tensões que as políticas educativas ignoram ou tentam resolver aplicando soluções velhas.

Tenho vindo a reflectir os dilemas e mudanças que, no nosso país, se fazem agudamente sentir no sector do ensino secundário como o efeito conjugado de dinâmicas conflituais, de entre as quais destaco:

  • a tensão entre a generalização/universalização desse nível de escolarização por força da procura de que é alvo e a sua brutal selectividade;
  • a tensão entre o limitado leque de conhecimentos validados e valorizados através da sua integração no currículo académico e o espectro muito mais vasto de saberes socialmente produzidos (científicos, tecnológicos, técnicos, práticos...) e a diversidade de interesses, orientações e motivações que caracterizam a população que aspira ao ensino secundário;
  • a tensão entre lógicas de articulação ou dicotomização das missões atribuídas ao ensino secundário encarando-o, na primeira opção, como o último nível de ensino comum e de formação profissionalizante para todos e, na segunda opção, como ciclo de estudos preparatório para o ensino superior ou para a vida profissional, em alternativa e abrangendo sectores distintos da população escolar;
  • a tensão entre a pressão para a ampliação de oportunidades educativas e a tendência para a restrição das oportunidades sociais e de vida;
  • a tensão entre as exigências derivadas da construção do processo de escolarização como projecto político-cultural e como condição infraestrutural da economia.

As políticas educativas têm procurado responder a estas dinâmicas conflituais como se a tensão não existisse ou então adoptando as velhas soluções, ensaiadas desde há quase um século, de criação de vias de estudos separadas, consideradas o único caminho possível e pensável para confrontar as pressões contraditórias que actualmente estruturam o, e modelam os quotidianos vividos no, ensino secundário.
A reforma dos anos 90 e a reorganização curricular agora programada não são, a esse título, distintas, com a particularidade - decisiva - de que esta última tenta reconstituir, sem o anunciar, no seio do ensino secundário regular, a via terminal de massas em que as Escolas Profissionais não parecem poder tornar-se. Estas, considerada a sua configuração institucional específica como subsistema tendencialmente privado em grande parte sustentado por dinheiros públicos, dificilmente podem vir a ser, ainda devido a características institucionais decorrentes da sua gestação e história, uma modalidade massificada e viável de escolarização secundária de massas.
A situação configura já hoje a consumação de facto da violação, no domínio do ensino profissional, do princípio segundo o qual o sector privado se constitui como supletivo face ao sistema educativo público; a realidade é, naquela área, a inversa , com o Estado a financiar em grande medida todo um subsistema privado. Acresce que, como a formação dos estudantes apenas é sustentada por dinheiros públicos estritamente no período correspondente à duração do ciclo de três anos, são os jovens e as suas famílias que pagam os estudos em todas as outras situações, nomeadamente aquelas em que os cursos não são concluídos no prazo fixado. Podemos, então, interrogar-nos acerca das consequências - e, mais, concretamente, tendo em conta o prevísivel prolongamento da escolaridade obrigatória - da manutenção da actual estrutura do ensino secundário e da (in)viabilidade da constituição das Escolas Profissionais como uma via terminal de massas.
Por outro lado, dada a actual limitação de vagas para os Cursos e Escolas Profissionais, é plausível que os critérios de admissão, à semelhança do que ocorre em duas Escolas que estudei, valorizem prioritariamente o desempenho académico anterior do candidato e/ou a posse de aquisições escolares àquele referenciáveis. Nessa medida, é bastante provável que o público que hoje frequenta as Escolas Profissionais constitua uma população relativamente seleccionada face ao universo da sua procura potencial e efectiva. Em consequência, talvez o ensino secundário regular, e sobretudo os Cursos Tecnológicos, acolham actualmente muitos dos alunos para quem as Escolas Profissionais teriam sido concebidas. Pode ainda questionar-se quantos daqueles engrossarão as fileiras dos jovens que desistem dos estudos após o 9º ou no 10º anos de escolaridade. Se a estes acrescentarmos os cerca de 50% de finalistas do ensino secundário que, em qualquer das três vias de estudos, segundo dados de 1996/97, não o concluíram no mesmo ano, fica à vista o quanto o direito à educação se tornou virtual para estas dezenas de milhares de jovens de que, todos os anos, a escola vai paulatinamente desistindo.
Que respostas para esses públicos podem ainda ser encontradas no quadro estreito dos projectos político-sociais que procuram manter a limitada democratização do ensino secundário? O insucesso e o abandono sabemos nós que têm sido simultaneamente as opções e o preço a que foram condenados esses contingentes de jovens. Entretanto, não cessaram de crescer os sinais de que as forças que concorrem para a actualização e as metamorfoses da reprodução cultural e social através da escola aprofundam, no mesmo movimento, as tensões e dilemas que configuram a multifacetada e, aparentemente, instalada, ainda que mutável, crise dos sistemas educativos. É minha convicção que não seremos capazes de confrontar esta situação se não procurarmos respostas e caminhos construídos em torno exactamente dos conflitos e dinâmicas contraditórias que a habitam. As soluções simples e tranquilizantes (vias separadas, mais exames, mais selecção, cada qual no seu lugar...) constituem tentativas patéticas, com consequências imprevisíveis, de reconduzir a realidade a uma ordem imaginária que, todos os dias, a vida dentro e fora das escolas dolorosa e duradouramente desmente.


  
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Edição:

N.º 112
Ano 11, Maio 2002

Autoria:

Fátima Antunes
Univ. do Minho
Fátima Antunes
Univ. do Minho

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