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Descoroçoados

Nos finais do século XIX, um intelectual descoroçoado pelo estado em que se encontrava o País, referia-se a Portugal como o "campus ubi fuit Lusitania", o que quer dizer "o campo, ou território, onde outrora existiu a Lusitânia". Sem prejuízo de outras considerações menos agradáveis, este intelectual devia ser um daqueles "vencidos da vida" que se matavam como tordos por causa de "todas as impossibilidades" da "coisa" a que chamavam Portugal. Ora, depois das últimas eleições legislativas tenho encontrado muitos intelectuais que se têm mostrado completamente descoroçoados como o nosso intelectual do século XIX. Mas não têm muita razão para isso, como irei demonstrar a propósito da música. Por isso, caro leitor, se é um desses desanimados, leia com atenção a seguinte história que em breves, muito breves palavras lhe vou contar, e verá depois que não há razão para tal!

"Por volta de 1269, em plena Idade Média, pois, andava Frei António cabisbaixo. Os irmãos monges haviam-no incumbido das composições para os ofícios religiosos. Estas eram porém muito difíceis de cantar. Foi então que o Abade do mosteiro resolveu enviar um mensageiro a Roma para que tais composições fossem analisadas, já que todos reconheciam devidamente o talento de Frei António. Vários meses depois, avistava-se ao longe o mensageiro que voltava. Em pouco tempo o Abade reuniu todos e leu uma longa mensagem que assim terminava: "... podem-se cantar. Nelas existe porém o "diabolu" na música (fiz aqui uma tradução livre, mantendo todavia propositadamente a forma latina do termo "diabo")". Os irmãos ficaram amarelos, Frei António corou e recolheu-se à sua cela por longos dias sem comer e adormecendo apenas de cansaço. Um dia abriu a porta, espreitou e não viu ninguém. Ao longe, os pesados portões do mosteiro encontravam-se entreabertos e convidativos. Frei António arreou uma mula, montou-se nela e saiu do mosteiro. Foi andando, andando, sempre pensativo e absorto quando reparou que estava em Leixões. Havia muitos dias que uma ideia não lhe saía da cabeça. Ao chegar a Leixões, desmontou e olhou em redor. Não havia vivalma. Tirou as pobres sandálias, arregaçou o roto hábito e foi molhar os pés ao mar. Andava de cá para lá e de lá para cá na praia, com as fracas ondas a baterem-lhe suavemente nos pés, quando de repente o coração lhe começou a bater fortemente. Era isso! Tinha descoberto uma maneira de fazer os irmãos cantar o "diabolu"! Havia que voltar já para o mosteiro! Foi-se à mula, montou-se nela outra vez e foi a trote que a mula não dava mais. Entrou no pátio a correr, onde estavam vários irmãos a "praticar" (a falar!), foi ao poço, bebeu um rápido golo de água e meteu-se na cela (um dos monges, atónito, disse para o Abade, não menos atónito: - How do you solve a problem like Antonio?; ao que o Abade respondeu: - How do you catch a cloud and pin it down?; e um outro monge: - How do you find a word that means Antonio?; outro: - A fliberti gibet!; outro: - A willo' the wisp! E outro: - a clown! (e assim por diante!). António, entretanto, com as mãos a transpirar e a tremer agarrara numa pena e sorria. As palavras saíam-lhe fluentemente e a música em que tanto pensara nos últimos dias ajustava-se perfeitamente. Tinha feito uma grande descoberta!

Eis então o resultado da criação de Frei António:

"O mar enrola na areia,
ninguém sabe o que ele diz,
bate na areia e desmaia
porque se sente feliz."

Passados alguns dias já todos os monges cantavam o "diabolu in musica", entoando a composição de Frei de Antonio. Na aldeia que ficava próxima do convento, as crianças foram as primeiras a aprendê-la quando ouviram um dos monges que estava a lavar o pátio fora dos muros. E houve mesmo quem garantisse que até el-rei já a sabia de cor e a fizera aprender a todos na Corte, o que muito terá contribuído para que rapidamente se espalhasse por todo o "campus", perdão, por todo o país! E estavam todos muito contentes e viveram felizes para sempre...".

Nós hoje chamamos "trítono" ao dito "diabo" e segundo os grandes pedagogos é um dos intervalos mais difíceis de executar na aprendizagem musical (veja-se os grandes livros de pedagogia musical). Dos mais difíceis!

Menos para os portugueses, é claro, que o cantam desde nascença. Embora não tenham exactamente a noção desse facto. Mas como vê, caro leitor, como se pode percepcionar por estas nossas capacidades inatas, não há, afinal, muita razão para andar descoroçoado...


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 111
Ano 11, Abril 2002

Autoria:

Guilhermino Monteiro
Escola Secundária do Castêlo da Maia
Guilhermino Monteiro
Escola Secundária do Castêlo da Maia

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